2020 Nunca Mais

ACABOU!!! Finalmente esse desastre que alguns chamam de ano que foi 2020 chegou ao fim e nos livramos dele. Um troço que começou estranho, foi caminhando esquisito, chegou à incompreensão e ao caos e terminou sem ninguém entender o que estava acontecendo. Foi isso. Recebemos 2021 sem nenhuma certeza, como se estivéssemos superado uma fase de um game beta ainda sem nenhum review, sem muitos pedidos, porque nem sabemos muito bem o que desejar além da vacina; e sem apego às retrospectivas, pois o quesito de tempo parece ter mudado de um jeito que ainda não foi compreendido. Não que elas não existam e eis 2020 Nunca Mais (Death to 2020) que não nos deixa mentir.

Dos criadores da série Black Mirror – que nunca, jamais, em tempo algum chegaram perto de imaginar o que seria 2020 -, o especial da Netflix faz um apanhado dos eventos marcantes do ano passado. “Por que diabos vocês querem fazer isso?” pergunta o jornalista descrente vivido por Samuel L. Jackson, que vem acompanhado de um elenco estelar, com Hugh Grant, como o historiador ultrapassado; Lisa Kudrow, como a porta-voz bannoniana; Kumail Nanjiani, como o CEO das empresas do Vale do Silício; Tracey Ullman, como a alienada rainha Elizabeth, e Leslie Jones, como a psicóloga ativista de saco cheíssimo da humanidade, entre outros. 2020 Nunca Mais respeita os limites, mas o tom é o da ironia. Já que tudo foi uma desgraça, a trama busca o humor. Os personagens fictícios são absurdos, assim como é absurda a história que contam.

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O especial demonstra que tudo já estava começando esquisito quando, ainda no início de 2020, a Austrália ardeu em chamas e a Terceira Guerra Mundial quase teve início, sem falar do surgimento da doença misteriosa, o maior e mais mortal acontecimento do ano, na cidade chinesa de Wuham. Janeiro. Ainda era janeiro. De lá seguimos pela série de fatos surreais que tínhamos acompanhado chocados. Com a narração de Laurence Fishburne, o especial segue o formato dos programas televisivos tradicionais de retrospectivas, misturando fotografias, trechos de vídeos, entrevistas encenadas e gráficos elaborados. Há uma certa previsibilidade na construção das intervenções, mas isso traz até um certo alívio em um elaborado complexo de ser condensado.

Por ser estadunidense, o centro das atenções e das chacotas, não sem motivo, é Donald Trump. Seus absurdos vão se amontoando, demonstrando o quão inacreditável é alguém como ele ter conseguido chegar ao fim do mandato (não sei se uma brasileira pode falar isso de qualquer outro presidente do mundo). A título de exemplificação, sua primeira ação em 2020 foi eliminar o major-general iraniano Qasem Soleimani e a consequência provável do ato ainda agora pode ser apenas a Terceira Guerra Mundial, mas sua reação foi um anúncio sem pé nem cabeça da execução, exaltando-a. Depois da irresponsabilidade bélica, veio mais: pressões a países estrangeiros, assédio a inimigos políticos, negligências sanitárias e a outras bizarrices.

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Questões sociais são pontuadas por todo o programa. Sejam na representação da alienação, na figura da Rainha com seus problemas, como o abandono da realeza britânica pelos príncipe Harry e sua esposa Meghan, e na cerimônia do Oscar em fevereiro. Por trás de ambos, a mesma questão: o racismo estrutural. 2020 Nunca Mais brinca com a quebra da tradição, em um evento de brancos para brancos, quando Parasita, uma produção sul-coreana, levou o prêmio de melhor filme; e engrossa o tom quando lembra o assassinato de George Floyd e precisa falar da América supremacista legitimada pela figura de Trump e representada por “cidadãs de bem” como a personagem nazi-fascista de Cristin Milioti e seu discurso de grupos de WhatsApp. O especial também fala da tênue linha entre engajamento e oportunismo, quando marcas e pessoas usam do discurso e da dor de outros para surgirem como salvadores ou representantes de uma causa que não compreendem realmente e nunca será deles. 

No meio do caos, desse emaranhado de eventos, figuras patéticas e desgraças, 2020 Nunca Mais tem um pano de fundo devastador: o tal Coronavírus. Aquele que apareceu na China em janeiro e foi se espalhando rapidamente pelo mundo, infectando e matando milhões de pessoas e forçando governos a estabelecer medidas radicais de isolamento. Um vírus que mudou o modo como as pessoas deveriam viver as próprias vidas, mas que gera reações diferentes em locais diferentes do mundo. A retrospectiva fala de ações, reações, crenças, fake news, e vez por outra lembra a velocidade da destruição com um mapa que vai sendo tomado por uma espécie de musgo infeccioso que se contrapõe a imagens pós-apocalípticas de megalópoles completamente desertas ou aglomerações negacionistas. É inacreditável.

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2020 Nunca Mais traz para dentro de si a brincadeira do desprendimento. Quando entre seus especialistas inclui uma “pessoa comum”, o faz em forma de alguém completamente alienada, alguém que não tem qualquer relação com o mundo exterior – não apenas pela quarentena ou isolamento social, mas é como se não conhecesse mais nada de nada. Ali ele restringe a experiência à eleição americana e à patética figura alaranjada de Trump. Mas vamos brincar disso. Imagine que você é essa pessoa, um alienígena que chegou por acaso aqui e não sabe nada desse mundo e, de repente, encontra a história de 2020. Certeza que você acharia tudo um dramalhão exagerado, sem sentido, sem cabimento e teria aquele momento: “inventaram tanta coisa que agora não vão ter como terminar isso tudo”. E olha que o especial está falando só dos Estados Unidos, imagina se incluísse a família Bolsonaro e seus adendos no pacote.

Mas o fato é que 2020 acabou. Sobrevivemos! Esperanças? Não temos muitas, mas pelo menos passamos de fase. Acho que isso foi uma coisa bem positiva.

Um grande momento
“E ele bate continência para o helicóptero”

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