Berlinale 2022 em formato presencial é um grande erro 

A Berlinale 2020 foi o último grande festival de cinema que aconteceu antes do mundo capotar, antes de sermos colocados frente a mudanças com desdobramentos de caráter civilizatório. Desde a Segunda Guerra Mundial, não éramos confrontados de forma tão violenta em tão curto espaço de tempo.

O filme de Mário Peixoto, lançado em 1931, permanece dolorosamente atual ao esfregar na nossa cara a limitação concreta e filosófica da vida: dentro de um barco à deriva debaixo de sol à pino, numa unidade de tratamento intensivo ou em frente a um hospital à espera de balões de oxigênio para salvar a vida de quem se ama. A perplexidade diante de uma dinâmica incontrolável de um vírus mortal une as mais antagônicas culturas e o medo, é o denominador comum entre elas.

A celebrada “normalidade“, composta de rituais de todos os tipos, como festa populares, festivais de música e cinema desapareceram do nosso calendário, das nossas expectativas e das nossas percepções. Realizar grandes eventos passou a ser sinônimo de uma frieza neo-liberal, um ato de irresponsabilidade e egoísmo e mesmo assim: a justificativa financeira parece a receita infalível para deixar para trás valores humanistas.

A classe política nos prometeu a volta à “nossa vida antiga”. Mesmo depois de 3 vacinas, a promessa se transformou em frustração, a raiva em dobradinha de falta de perspectiva e aquela saudade da autodeterminação, tão intrínseca em nossas vidas no exercício da liberdade de ir de vir, sair pelo mundo movidos mais do que pela paixão pelo cinema mais até do que “somente“ pelos filmes, mas por todos os desdobramentos de um festival de cinema em dias transcendentes recheados com discussões acaloradas de fim de noite regadas a cigarro e cerveja, abraços ou gritos de “Voceeêee aqui?“ nos corredores do centro de imprensa ao deparar com o inesperado entre um filme e outro ou mesmo a cumplicidade em ter a cara amassada às 9 horas da matina com cinema lotado para a primeira cabine de um novo dia depois de uma noite mal dormida, mas preenchidos de felicidade.

Auf Wiedersehen espontaneidade!

O ato espontâneo de pegar um cineminha num final de tarde ou no fim da noite, desapareceu da nossa retina, da nossa visão periférica. Hoje, antes de ir ao cinema na Alemanha, é preciso fazer um registro com a antecedência de três dias, além de ter que apresentar o comprovante de vacina e o preencher o formulário com dados pessoais para eventual rastreamento em caso de contaminação, de alguém sentado na sala de projeção.

O deleite de chegar mais cedo na sala, vislumbrar a perfeição, (ou não) das dobras da cortina vermelha de tecido pesado, sua elegância, frio na barriga e suspense na hora em que a luz se apaga, a coreografia da cortina e o barulho dos “trilhos“ se abrindo, aquela pausa da tela branca, a luz apagada e a cortina em posição de sentinela, o deleite de usar o assento especialmente para dois (sem divisão) para curtir o filme ao lado de quem se ama ou simplesmente ficar petrificado na poltrona sobre o que se acabou se ver depois que a luz acende. Todos esses ingredientes se tornaram um perrengue frente à uma pandemia da qual não se pode fugir.

Daniel Seiffert/Berinale

Exigências e Regulamentos

Para as exibições de cabine, no preâmbulo da Berlinale é exigida a vacina de reforço e o uso de máscara é obrigatório o tempo todo.

Durante os dias dos festival (de 10 a 20 de fevereiro) será preciso um teste diário para complementar a bíblia, os mandamentos do Covid-19. Os bilhetes para as sessões de imprensa terão que ser reservados online. A espontaneidade de poder ter a sorte de conseguir Against All Odds, um ingresso de última hora  para um filme de lotação esgotada porque alguém devolveu o ingresso. 

Uma das frases memoráveis deixadas pelo ex-diretor da Berlinale, Dieter Kosslick, ensina: “O cinema nos mostra o que acontece no mundo,“. Que um dia essa frase iria ganhar significado absoluto e especialmente na edição do festival em 2022, é consternante e doloroso.

Teimosia na hora errada

A 72a edição acontece durante o pico da quarta onda da pandemia com a variante Ômicron, comprometendo todos os tipos de serviço, além da contaminação-total nas escolas, incluindo o dia a dia, situações dignas de filmes dirigidos por David Cronenberg. Dependendo do resultado do teste feito diariamente, o clima é de alívio ou de terror, com alunos sendo retirados da sala direto para a quarentena, cenas de choro, desespero e medo. 

Depois de longas semanas sem uma definição, a CEO da Berlinale, Mariette Rissenbeck e o diretor artístico Carlo Chatrian teimaram no evento em presença física, colhendo severas críticas da imprensa alemã. Um artigo escrito pela jornalista Wenke Hussmann no jornal “Die Zeit” foi entitulado: “Berlinale 2022: como estar no filme errado“. O jornal berlinense Taz, critica: “Enquanto em Berlim foi extinta a obrigatoriedade da presença nos jardins de infância, a Berlinale faz o contrário. O cinismo é assim“.

Por mais apaixonante e instigante que seja a Sétima Arte e a ferramenta para interagir com o mundo e uma sala um dos melhores lugares para estar, a preservação da vida e da saúde precisa ser o mais importante fator, determinante na política de saúde e não o capital, não a indústria do cinema, não a vaidade de CEOs de grandes empresas de distribuição. O lema exibido no site do festival,”Vacina também protege a cultura“. tem retórica vazia e pincelada com lascas de um otimismo falso e oportunista, ironicamente num país com um dos maiores números de negacionistas da ciência e dos efeitos da vacina, da Europa.

As notícias de contaminação chegam cada vez mais perto (vizinho, manicure, carteiro), comprometendo os serviços de infraestrutura também nos asilos e hospitais.

Por que teimar num festival em presença física? Por que essa medida de forças com o vírus? Por que não inovar com o uso da tecnologia oferecendo um formato híbrido, possibilitando a um maior número de pessoas, acesso ao grande festival? Decerto que a telinha do computador está longe de ser uma experiência sensorial de luxe, mas a saúde precisa ser o único fator determinante. Nenhum outro. Com essa decisão teimosa e desproporcional frente à situação pandêmica, a Berlinale compromete sua reputação, não fica bem na foto. 

Mesmo com a edição 2022 sendo bem mais enxuta do que a de 2020, com as plataformas do mercado (EFM), Berlinale Talents, plataforma de formação de novos talentos e nova safra sendo todas online. O World Cinema Fund (WCF), fundo de fomento para produtores e cineastas de países com poucos recursos, se encontra no infinito mundo da web, o que diminue consideravelmente o número de pessoas que estarão na cidade, mesmo assim. Aglomerações em salas fechadas são o maior pontencial de contaminação e o percentual de vacinados na Alemanha ainda está longe de atingir a “imunidade de rebanho”. 

Comeback

Em comparação à edição de verão de 2021 (o “Cenas” cobriu), o festival 2022 é mais encorpado: A Mostra Retrospectiva voltou, a Berlinale Goes Kino também. Essa última foi uma idéia de Dieter Kosslick consiste na exibição de filmes da programação do festival em cinemas de bairro, algo intrínseco da cultura municipal de Berlim.

Em tempos de um Zeitgeist mais solícito, a proposta seria uma celebração dos cinemas de bairro, vizinhos se encontrando para ir ao cinema de seu bairro, que resiste às grandes salas em Shoppings Centers, não fosse a recomendação dos cientistas em evitar aglomeração, a medida mais rápida de conter o número de contaminações. A fatura não fecha.

Ao invés de 10 dias, “a parte do leão“ da Berlinale acontece entre 10 e 16 de fevereiro, dia da premiação dos Ursos. Os restantes quatro dias serão a versão XXL do chamado “Dia Berlinale do Cinema“ (Berlinale Kinotag), geralmente reservado para o último dia do festival, o domingo depois da noite de premiação para que berlinenses “invadam” o cinema. 

O Instituto Robert Koch (EKI), que aconselha o governo e faz parte da Task Force com cientistas e virologistas, prognosticou o ápice da pandemia com a variante Ômicron para a metade de fevereiro. Nem mesmo esse dado científico foi suficiente para convencer a diretoria do festival a adiá-lo ou levá-lo, por completo, para mundo da web.

Medidas sanitárias X prazeres cinéfilos 

Não é só o efeito colateral (mesmo tendo as 3 vacinas, incluindo a de reforço), seria preciso fazer um teste todos os dias que eu quisesse ir ao cinema. Chegando lá, o procedimento na chegada teria como roteiro: fila, controle de carta de vacina e controle do resultado do teste feito naquele dia, acompanhamento da equipe de seguranca para o guarda-roupas e assim por diante. Toda a parada para conversar será proibida, qualquer gesto espontâneo, também. Isso tudo juntado ao fetiche habitual dos alemães em querer dar ordens, adestrar, comandar. Com o aval da pandemia e “tudo por um bom motivo“ a legitimidade se tornou inconstetável dentro e fora do cinema. Os seguranças te seguem até a tua cadeira, impreterivelmente aquela do número expresso no bilhete adquirido anteriomente online. Como se não fosse pouco esse conglomerado de freios e corta-prazeres, tem também o acompanhante constante: o medo da contaminação, a desconfiança de quem está sentado ao lado, que atingem seu ápice com um espirro ou ao som de tosse seca. Mesmo que muitos cinéfilos tenham festejado nas redes sociais a Berlinale presencial, o perigo é real e concreto. Não há o que relativizar. Fazer uso de uma über-euforia como “sinal para a cultura“ é vender o peixe errado.

Deleites perdidos

O prazer de chegar mais cedo, vislumbrar as barras e os viés da longa cortina vermelha, carimbar o passaporte para o início de uma viagem, quando a tela fica branca, antes da luz na desaparecer por completo e o hino-mor que nos leva ao paraíso sensorial, a vinheta da Berlinale: quando ela entoa, a gente constata que não poderia estar em melhor lugar no mundo e tudo, tudo faz sentido.

Um festival de cinema em formato presencial, especialmente num país com fetiche em rituais como a Alemanha sob regras rígidas de uma pandemia é uma teimosia inapropriada e que ainda chega com uma aura de arrogância ao bater de frente com as regras estipuladas pelo Zeitgeist.

O receio de alguns jornalistas que a Berlinale pudesse despencar ao nível do Festival de Rotterdã e perder o terceiro lugar na lista dos 3 festivais mais importantes do mundo, nada tem de consistente. A injeção financeira que o governo federal, através do ministério de cultura e mídia oferece a várias pilstras do setor, atualmente com a iniciativa NeuStartKultur (o reinício das atividades culturais) é tão robusto que a possibilidade da Berlinela de “despencar“ no Ranking dos festivais “Categoria A“ é totalmente infactível. Além do mais, poderosas empresas de fomento e produtoras alemães são somente uma das pilastras que fazem de Berlim, um Must Have na Liga dos Campeões do cinema. Entretanto, o fator determinante em teimar no evento presencial não foi “uma voz pela cultura“, mas uma promessa tosca em doses homeopáticas com pitadas da tal “normalidade“, mas por motivos econômicos, especialmente na veiculação dos filmes (venda e distribuição).

A estratégia se mostra clara, num exemplo com a produtora S.U.M.O Film, responsável pelo documentário Um partido alemão do diretor Simon Brückner que durante 3 anos acompanhou políticos do partido de extrema-direita (AfD) e se negou a conceder-me uma possibilidade de ver o filme “na nuvem“ antes da sessão de imprensa no festival com o argumento:“O filme foi feito para ser exibido no cinema“. Por nenhum acaso, essa foi a mesma justificativa da organização do festival, ao ser questionada pela imprensa do porquê a Berlinale ser em presença física (apesar do números com recordes diários de novas infecções do COVID-19).

Acaso infeliz

A cópia restaurada de Tommy (1973), o novo filme do diretor François Ozon,  com a fenomenal Isabelle Adjani (uma das razões pelas quais eu me apaixonei por Berlim, mesmo antes de aqui chegar ao vislumbrar seu desempenho em Obsessão, dirigido pelo ucraniâno Andrzej Zulaswski, rodado na época da Guerra Fria), e o já citado documentário serão motivo de saudade do que a minha retina não viu. Ela, tão esfomeada por novas histórias de um Zeitgeist que nos deixou tão na secura e com os prazeres esfarelando.

Os representantes do cinema brasileiro Manhã de Domingo, dirigido por Bruno Ribeiro (Berlinale Shorts); Fogaréu, com a direção, roteiro e argumento de Flávia Neves (Panorama) e, O Dente do Dragão, de Rafael Castanheira Parrode (Forum Expanded), eu pude assistir nas cabines.

Manhã de Domingo, de Bruno Ribeiro

Mini-Presença

O cinema brasileiro, ao contrário do que foi a edicao de 2020 apelidado pela jornalista Flávia Guerra (Canal Brasil) de “BRAsinale“ devido à enxurrada de obras brasileiras, aparece bem tímido na edição 2022, não “só“ pelo caráter enxuto da programação devido à redução dos dias de festival e a lotação de 50% dos lugares de cinema, mas também pela sistemática destruição do Setor Audiovisual, exercido pelo atual desgoverno federal brasileiro.

Superação

A equipe de Manhã de Domingo conseguiu, de última hora, completar a vaquinha iniciada para cobrir as despesas da equipe, que vem apresentar o filme. Em tempos de uma política de fomento que merecia o nome, o Ministério da Cultura tinha verba extra para a visibilidade do setor audiovisual. Para a equipe do filme, que se exercitou em teimosia, haverá um Happy End.

Para a colunista do Cenas e uma das mais conhecidas jornalistas da Berlinale, resta a única opção de uma cobertura “de longe“, mesmo que minha casa seja a dez quadras do festival. Sou contra o festival em presença física. Participar dele. seria hipocrisia. 

2023 é logo alí!

Quando o novo ano chegar e, se Deus for mesmo brasileiro e o país tiver um governo que honre a cultura riquíssima do país de proporções continentais, quando eu puder abraçar meus amigos e meus colegas chegando dos varios cantos do mundo, aí sim, será a Berlinale que eu conheço: eletrizante, contagiante e que, até agora, fez valer a pena permanecer nessa cidade tão eferverscente, mas também convulsiva como Berlim.

Cinema é liberdade, transcendência e não combina nem com um vírus mortal, nem com cintos de segurança. Tem um ditado em alemão que ensina: “É preciso esperar pelo que é realmente bom“.

Que venha a Berlinale 2023. Vai ser punk!

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