Tão acostumados que estamos com um certo ‘padrão cômico de qualidade’ das produções nacionais, essa estreia da plataforma Netflix ‘Cabras da Peste’ é uma surpresa justamente por um aspecto geralmente esquecido nessas produções. Uma comédia de qualidade, seja da nacionalidade que for, precisa ter ‘timing’, não apenas às performances dos atores nem a rapidez de suas piadas. Em um filme, esse mesmo ritmo tem que ser expandido até sua elaboração visual e à coordenação de todos os elementos – o tempo do ator, o tempo da piada e o tempo da montagem precisam estar cronometrados, não pode ter desencontro para que o humor seja alcançado.
Com um time formado pelo trio Saulo Simão, Ricardo Figueiredo e o experiente Leopoldo Nakata (de ‘Comeback’), o filme não apresenta tempos mortos em sua duração, funcionando como um relógio suíço para entregar essa precisão que uma comédia exige de uma montagem, muito mais do que uma produção dramática. Uma boa comédia, estrelada por Mel Brooks, Renato Aragão ou Ugo Tognazzi, se vale principalmente desse ritmo que, muitas vezes, escapa por segundos de uma cena pra outra, que parecem ser exageros contornáveis mas ‘engordam’ momentos que precisavam de concisão pra funcionar.
Óbvio que, apesar disso tudo, o filme de Vitor Brandt (que dirigiu o negativamente infame ‘Copa de Elite’) não é uma realização assegurada na perfeição, mas talvez um veículo propulsor de novas ideias para a comédia no Brasil, o gênero mais consumido e de maior movimentação da nossa filmografia, que precisa passar por uma reestruturação interna pra manter sua relevância em um mercado cada vez mais competitivo. O olhar que Vitor lança sobre o material que representa não tem muitos pares seus fazendo por aqui, ao misturar talentos individuais com referências cinematográficas alheias e históricas; não é um modelo inédito, mas é um raramente utilizado, o que já sinaliza como frescor no nosso cenário.
O filme se pretende também uma sátira à moda antiga, quando ainda nos créditos de abertura a voz de Gaby Amarantos nos apresenta uma versão em forró do clássico indicado ao Oscar ‘The Heat is On’, tema de ‘Um Tira da Pesada’, aqui batizada de ‘Que Calor do Cão!”, que já provoca um misto de reconhecimento de terreno com intenções traduzidas. O filme tem uma pitada leve do pensamento do trio Jerry e David Zucker e Jim Abrahams, criadores de obras essenciais como ‘Apertem os Cintos, o Piloto Sumiu!’ e ‘Top Gang’, sem jamais soar intrusiva ou desperdiçada – na verdade reside até uma certa sutileza no filme, que nunca passa do ponto.
Além disso, o filme esbanja carisma e simpatia, seja por sua própria estrutura mesmo de ‘comédia policial com parceiros que não se bicam’ até chegar em seu elenco, capitaneado pelos sempre inspirados Edmilson Filho e Matheus Nachtergaele, provando mais um acerto do filme, que soube exatamente fazer o que filmes assim sempre fazem, que é criar uma dupla entre duas pessoas muito improváveis. Ambos estão muito à vontade em seus papéis e criam um dinamismo incomum na narrativa, além de abusarem com seus talentos individuais, elevando o material como um todo. Com as incursões de Evelyn Castro, de Falcão e da participação rápida de Juliano Cazarré, o filme se enche de talentos também na criação da formação das piadas, unindo várias vertentes diferentes do humor.
Ágil e azeitado, ‘Cabras da Peste’ tem por trás de si a Glaz Entretenimento, produtora que tem se notabilizado por elevar a qualidade das produções das comédias nacionais, tais quais vimos em ‘Tô Ryca!’ e ‘Loucas pra Casar’, entre outras. Aqui, mais uma vez a engrenagem do seu padrão de qualidade é colocado à prova e se mantém aparelhado com ótimos momentos de diversão pra nossa cinematografia. Prevejo que a Netflix, que herdou o lançamento do filme das mãos da Paris Filmes por conta da pandemia do COVID-19, tenham em mãos um novo e merecido sucesso.
Um grande momento
No uber com Jocimara
Ver “Cabras da Peste” na Netflix