Crimes of the Future, de David Cronenberg
(Candá/Grécia/França, 2022)
Competição
De humani corporis fabrica, de Véréna Paravel e Lucien Castaing-Taylor
(França, 2022)
Quinzena dos Realizadores
Moonage Daydream, de Brett Morgen
(EUA, 2022)
Fora de Competição
Quando circulou pela internet o trailer do novo filme de David Cronenberg, juntamente com a informação de que era seu primeiro trabalho a partir de um roteiro original dele mesmo desde existenZ em 1999, criou-se para a exibição do filme num lugar como Cannes um frisson tipicamente reservado apenas para alguns autores do cinema. Era a promessa de se trazer de volta o “verdadeiro Cronenberg” (um conceito um tanto hilário, como se algum impostor tivesse realizado seus filmes dos últimos vinte e poucos anos – vários dos quais muito mais que apenas ótimos). Esta é tipicamente a circunstância que, em geral, nenhum filme consegue exatamente “superar” a partir da expectativa meio torta que é criada.
O que se pode assegurar, porém, é que Crimes of the Future parece um filme bastante autoconsciente desse seu lugar em meio à obra do cineasta, não só trazendo de volta alguns elementos visuais e narrativos de trabalhos anteriores, como praticamente fazendo referência direta a vários deles de fato. A impressão que fica, num certo sentido, é como se Cronenberg simplesmente estivesse aproveitando alguns dos desenvolvimentos dos últimos vinte e poucos anos do mundo (como o aprofundamento da crise climática, a insanidade da relação da arte com as redes sociais, os desenvolvimentos no universo da cirurgia plástica etc.) e propondo uma espécie de “eu não disse?” em forma de uma nova ficção futurista. Surpreendentemente bem humorado para um filme que começa com o assassinato de uma criança pela própria mãe (não conta como spoiler algo que acontece aos três minutos de filme, certo?), Crimes of the Future pode surpreender alguns dos fãs mais radicais de Cronenberg por ser um filme muito mais falado do que exatamente visual. Sim, estão ali alguns fascinantes artefatos biotecnológicos, assim como cenas com incisões explícitas e corpos abertos, e muita estranheza na criação de uma realidade paralela cheia de detalhes pouco explicados. Mas, ainda assim, a dimensão da discussão filosófica e existencial parece tomar um lugar muito mais central no filme, nesse sentido reprisando algumas coisas que especialmente haviam sido desenvolvidas em Cosmópolis ou Um Método Perigoso – alguns desses “Cronenberg de mentira”.
O que o filme recupera, de fato, é um sentimento bem constante no cinema de Cronenberg: de que, se algo de estranho existe no interior dos seres humanos, por mais encarnado que se encontre no corpo que ele explora das maneiras mais variadas, é mesmo na maneira como pensam e sentem o mundo a partir desses corpos que acabam se revelando as grandes perversões e patologias das pessoas. Nesse sentido, a atuação ao mesmo tempo frágil e cativante de Viggo Mortensen no papel do protagonista lidera um elenco que consegue dar conta de criar por si mesmo um universo que depende muito mais de acreditarmos no que eles dizem do que naquilo que vemos (inclusive porque o filme é bastante discreto e low-profile na forma como usa algumas paisagens urbanas mais abandonadas de Atenas para construir essa ideia de um futuro indeterminado). Crimes of the Future está muito mais perto de um cinema-ensaio, a partir de uma construção quase experimental de um jogo com códigos de outras narrativas de cinema, do que de qualquer ideia mais careta acerca do cinema de gênero. E, sem dúvida, é um filme que nos pede algumas re-visitas para destrinchar (com trocadilho) a quantidade de detalhes e reflexões que propõe a partir de um olhar entre o triste e o esperançoso sobre o futuro para o qual inexoravelmente marchamos.
Curiosamente, porém, o novo Cronenberg não foi sequer o filme que usou de maneira mais radical a exploração do corpo humano pela tecnologia de ponta, e nem o que exibiu mais sangue e vísceras na tela grande no dia da sua estreia. Pois mais cedo, na Quinzena dos Realizadores, houve a estreia do impressionante documentário De humani corporis fabrica, em que Véréna Paravel e Lucien Castaing-Taylor mergulham de maneira inédita no trabalho cotidiano em hospitais de Paris. O filme tenta se aproximar dos trabalhos de médicos, principalmente, compreendendo que de alguma forma esse é um ofício que não se explica apenas acompanhando, literalmente, “de fora”. Para tanto, vão se utilizar de longas sequências realizadas com os aparelhos de investigação audiovisual do corpo: câmeras de endoscopia ou colonoscopia, micro-cirurgias, etc, numa ideia de trazer de volta pro cinema aquilo que, segundo eles, a tecnologia do cinema emprestou para a medicina. São sequências marcantes não apenas pelo que acontece com a natureza daquelas imagens ao serem transferidas do seu objetivo imediato para a tela grande do cinema, em que ganham ao mesmo tempo um poder de abstração por um lado, e uma enorme materialidade em especial por serem acompanhadas das conversas entre os médicos enquanto as realizam. E, por vezes, estes se revelam tão surpreendidos quanto nós com o que veem, enquanto em outras fica impresso na tela o esforço de distanciamento necessário na prática da profissão médica, onde o corpo (e em última instância a vida mesmo) de uma pessoa precisa se transformar apenas no cotidiano “objeto de trabalho”.
Movendo-se por diferentes espaços e especialidades no hospital, indo literalmente do nascimento à morte, De humani… permite entrever de maneira inédita o tamanho do peso e da entrega necessárias ao funcionamento de uma instituição como essa. É um filme de um detalhismo absurdo nesse mergulho, e que pede um destrinchamento igualmente atento que, no contexto dessa cobertura ampla e um tanto apressada entre quantidade de filmes e textos por dia a se dar conta, não seria possível aqui. Mas a sensação de que se presenciou algo único e especial, ela mesma bastante rara num Festival como Cannes, fica aqui registrada – assim como o fato de que é difícil não sair da sessão ao mesmo tempo com uma apreciação maior pelo trabalho de médicos mas também bastante mais receoso por entender o que se passa de fato num hospital.
Também é da busca por mergulhar através do cinema no âmago de um ser humano que se trata, principalmente, Moonage daydream, o filme que Brett Morgen realiza (imediatamente após se recuperar de um infarto que o deixou em coma por três dias, diga-se, conectando de maneira estranha esses dois filmes) a partir do acesso a horas e horas de materiais de arquivo sobre e a partir de David Bowie. Morgen toma duas decisões importantes ao estruturar esse material todo num longa de pouco mais de duas horas de duração: primeiro não usar como guia a cronologia da vida do artista como numa biografia tradicional, mas sim navegar livremente por fases e momentos da carreira dele partindo de impulsos mais abstratos, sejam eles artísticos ou existenciais; a segunda, de usar bastante a música como guia nesse caminho, numa apresentação da mesma com uma mixagem especial pensada para as salas de cinema, que torna o filme uma grande viagem sensorial, guiada sempre pela obra de Bowie.
Desde o começo, fica claro que o que interessa ao filme é menos discutir essa obra, porém, nos seus aspectos mais estruturais (como ela era composta, gravada, o trabalho da realização musical em suma), e muito mais se aproximar de Bowie como uma pessoa extremamente eloquente sobre as questões da existência e da criação artística no sentido mais amplo. Essa decisão na maior parte do tempo resulta muito bem exatamente porque os materiais de entrevista com ele (que é a única voz ouvida no filme, diga-se) permitem que isso seja feito de forma muito orgânica. No entanto, também é verdade que a partir de um certo momento o filme parece dar algumas voltas em falso ao redor de alguns temas que se repetem, sem que isso traga um sentido distinto necessariamente, chamando a atenção também a repetição de alguns efeitos de montagem típicos de uma lógica do videoclipe que acaba se esgotando na capacidade de criar surpresa e maravilhamento por toda a duração.
Ao final, porém, tanto a extrema autoconsciência de Bowie dos seus distintos papeis quanto suas reflexões sobre temas muito variados e profundos acabam se mesclando muito bem com as inacreditavelmente belas cenas de arquivo de algumas de suas performances ao vivo em distintos lugares, idades, fases. Assim, a experiência do filme termina permitindo um contato firme, e de sentimento forte, sobre alguns dos dilemas da existência e da capacidade da arte de dar conta deles. Visto próximo aos dois filmes acima, completava um dia de conexão com a essencial dimensão corporal da vida humana como maneira de se aproximar das experiências mais abstratas e, porque não, espirituais. E essa forma de se chegar ao etéreo a partir do mais material é, afinal, uma capacidade bastante pronunciada daquilo que é o fazer cinema.
Curte as coberturas do Cenas? Apoie o site!