Cannes 2022: Dos perigos da beleza e da destreza; e das armadilhas do revisionismo histórico

Le Otto Montagne, de Felix Van Groenigen e Charlotte Vandermeersch
(Itália/Bélgica/França, 2022)
Competição

God’s Creatures, de Saela Davis e Anna Rose Helmer
(Inglaterra/Irlanda/EUA, 2022)
Quinzena dos Realizadores


Toda obra de arte aspira ao belo, ou ao menos assim deveria ser – complexo é definir o que este seria, algo sobre o que muita gente boa já escreveu obras inteiras ao redor. Da mesma forma, todo artista deseja, de alguma forma, dominar a sua arte – embora, de novo, o que exatamente significa isso é difícil de ser definido. O que não se discute nas duas afirmações acima é que beleza e destreza na criação são algo sempre na cabeça daqueles que criam uma obra. No entanto, como todas as coisas delicadas e eventualmente passageiras, o equilíbrio na busca dessas duas coisas é sempre tão frágil que, se se tornam um fim em si mesmo para além do meio de chegar a uma obra, pode-se facilmente sufocar toda uma criação nelas… e foi isso que assistimos nesse dia, com dois filmes que certamente têm alguns momentos de força e autêntico interesse, mas que não conseguem escapar das armadilhas dessas buscas citadas.

Desde as primeiras imagens que batem na tela estamos sufocados pela beleza em Le Otto Montagne: de fato, o cenário natural que surge em esplêndida fotografia em 4:3 (o clássico formato mais quadrado de tela, uma escolha até interessante face às monumentais paisagens retratadas) faz a gente pensar que estamos frente a uma daquelas imagens quase absurdas de natureza que são usadas, por exemplo, pra descansos de tela no Windows. Mas não é só a beleza quase excessiva do que se vê na tela que já nos sufoca nos primeiros planos: sobre essas primeiras imagens se impõe logo uma narração em off poética e interpretativa que nos oferece de saída a chave de compreensão do tema principal do filme, a amizade de vida inteira entre dois homens. São menos de três minutos, e sentimos que já temos construção de beleza suficiente pra um filme inteiro – mas ele ainda vai durar mais duas horas e meia, das quais não parece haver um só plano que não seja lindo.

Cortesia Festival de Cannes Le Otto Montagne, de Felix Van Groenigen e Charlotte Vandermeersch

Existem no filme algumas ideias poderosas, sem dúvida, como um retrato de relações complexas entre pais e filho que não passa necessariamente pelo maniqueísmo, e sim pela mistura de amor e mágoa que pode facilmente marcar essas vivências; ou a colocação em questão das possibilidades de uma vida que meça o seu sucesso por réguas distintas do que o produtivismo absoluto impõe. Há ainda usos de linguagem de cinema menos óbvios, como principalmente as elipses que fazem a narrativa saltar no tempo, ou a presença na tela dos meninos no começo do filme, por exemplo. No entanto, parece que constantemente Le Otto Montagne duvida de que quaisquer aspectos desses possa se bastar, e é preciso sublinhar com todas as formas conhecidas a sua aspiração à poesia visual e emotiva (nesse sentido, o uso da trilha de canções é especialmente infeliz, daquele jeito que dá vontade de saber se ninguém na finalização do filme realmente sugeriu se não valeria a pena repensar a opção). Dessa maneira, o que acontece com o espectador no final do filme é o sentimento de uma sobremesa com excesso de açúcar: difícil comer até o prato estar limpo, mas se conseguir é seguramente preciso muita água depois pra limpar o palato de tanta doçura.

God’s Creatures joga num outro diapasão (ainda que também chame por demais a atenção pra algumas de suas decisões estéticas, como as marcas da filmagem em película hiper-presentes na tela), tanto emocional como cinematográfico. Aqui se trata menos de um excesso da beleza, mas sim do controle: um filme tão calculado e preciso, que torna as explosões de sentimentos que parecem viver dentro de seus personagens absolutamente difíceis de acessar para além da ideia repisada de que estão ali. Nessa história de uma família cheia de segredos e de complexidades numa pequena vila pescadora igualmente complexa no interior da Irlanda, desde o primeiro plano, literalmente, o filme nos grita: “tem algo de mais profundo acontecendo”. A gente entende isso logo, mas o filme continua fazendo questão de reafirmar isso sequência após sequência, após sequência.

A24 God’s Creatures, de Saela Davis e Anna Rose Helmer

Assim como no filme anteriormente citado, aqui a natureza joga um papel essencial de determinação das sensibilidades: sai a montanha, entra o mar. Assim como é central uma questão sub-reptícia lá, mas aqui muito central, sobre a masculinidade e sua fragilidade potencialmente sufocante e mortal. Mas o que fica de comum é uma mesma sensação opressiva de que ao espectador é dado pouco papel para jogar na sua recepção aos trabalhos que não seja a mais completa submissão à força com que os temas e as imagens, no sentido amplo do termo, são desenhados na tela. Nesse sentido, nenhum aspecto de God’s Creatures filme ilustra isso de forma mais clara do que a interpretação de Emily Watson, caso clássico de um “overacting da sutileza”.

Curiosamente, ambos são filmes dirigidos por duplas de diretores, e chegamos a pensar se pode haver aí algo um pouco mais do que coincidência: trabalhando em dois, é como se duas cabeças não necessariamente pensassem melhor, mas apenas pensassem mais do que uma mesmo. Libertar-se dos grilhões dessas hiper-racionalidades criativas nos dois casos poderia fazer muito bem aos filmes – cuja beleza e destreza estão aí servindo para coloca-los no maior festival do mundo, mas pode ser que impeçam que os filmes permaneçam muito mais do que isso, pois ao invés de sentidos, parecem filmes a serem obsessivamente admirados.


Tirailleurs, de Mathieu Vadepied
(França/Senegal, 2022)
Un Certain Regard

Les Harkis, de Philippe Faucon
(França/Bélgica/Marrocos, 2022)
Quinzena dos Realizadores


Não se deve esquecer nunca que, ainda que se apresente como (e em muitos sentido seja) o “maior festival de cinema do mundo”, Cannes também é essencialmente um festival francês de cinema. Isso ajuda a entender a exibição com destaque no Festival de um par de filmes como esses, cujo interesse maior, sem sombra de dúvida, é um revisionismo histórico sob determinados aspectos da herança colonialista francesa cuja força mais profunda é difícil de ser captada fora do contexto dessa cultura. Ambos, vale dizer, são filmes realizados por diretores franceses e brancos – o que ajuda a entender possivelmente porque, por mais que tomem posições simpáticas à uma espécie de reparação da memória de dois episódios capitais da exploração pelas Forças Armadas francesas de populações por elas colonizadas (no primeiro, a jovem população senegalesa que foi, literalmente, sequestrada para lutar na I Guerra Mundial; no segundo, os argelinos que serviram às forças de ocupação francesas durante a Guerra pela Independência do país africano), ainda assim soem estranhamente defensivos, colocando um discurso no mínimo dúbio sobre a natureza das guerras em si, assim como façam questão de destacar alguns personagens franceses brancos do tipo “nem todo francês…”, quando não uma certa posição passivo-agressiva que soa quase como um “mas mesmo sabendo que o horror maior foi francês, vocês têm um pouco de culpa nisso aí também né”.

Marie-Clémence David/Unitá/Korokoro/Gaumont Tirailleurs, de Mathieu Vadepied

No entanto, para serem aprofundadas, essas discussões para além dos filmes dependem de uma vivência mais profunda sobre essas questões. Em termos de cinema, o que se pode dizer é que são dois filmes que sofrem com problemas quase opostos: se o filme de Faucon parece conseguir pouco mais do que uma ilustração de uma determinada história que tem o peso de um relatório (em que efetivamente foi baseado), onde as cenas têm quase a mesma força e sentido do que as legendas explicativas de começo e o final; já o filme de Vadepied se dedica por demais à catarse da recriação em grande estilo do esforço da guerra e do sentimento de inutilidade do indivíduo frente a ele para que realmente entendamos o específico daquele momento e lugar. É como se um dos filmes fosse puro contexto, sem carne ficcional que se mantenha de pé; e o outro seja pura entrega ao carisma de um ator (Omar Sy, que também é o produtor e principal força por trás da realização do filme) e ao desejo de impressionar na reconstrução cinematográfica, com quase nada de substância mais firme.
Ao fim e ao cabo, se fica um pouco de saudade de um Fora da Lei, de Rachid Bouchareb (que aliás terá um novo filme em Cannes esse ano); ou de um Destacamento Blood, de Spike Lee, no sentido de filmes que conseguem recontar histórias de exploração de determinadas populações em esforços de guerra nacionais que conseguem nos fazer vivenciar contexto e ficção com igual força, talvez não seja por acaso que ambos eram filmes de realizadores pessoalmente implicados nos processos das histórias contadas: um franco-argelino, um norte-americano negro. Afinal de contas, “lugar de fala” raramente é questão de censura, e muito mais da impressão de um ponto de vista que pode ser sentido por quem assiste.

[75º Festival de Cannes]

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