Decision to Leave, de Park Chan-wook
(Coreia do Sul, 2022)
Competição
Tori et Lokita, de Jean-Pierre e Luc Dardenne
(Bélgica/França, 2022)
Competição
Metronom, de Alexandru Belc
(Romênia/França, 2022)
Un Certain Regard
La montagne, de Thomas Salvador
(França, 2022)
Quinzena dos Realizadores
Fogo-Fátuo, de João Pedro Rodrigues
(Portugal/França, 2022)
Quinzena dos Realizadores
Para os que acreditam que tudo que se vive tem uma motivação maior, e que alguém está sempre desenhando as linhas do que se vai acontecer… bem vindos à ficção! Afinal, neste registro não há espaço para dúvidas nem a dependência de nenhuma fé: de fato, há uma “voz superior” que está sempre não apenas delineando cada passo do que acontece como, inclusive, como cada passo vai acontecer. E muitas vezes as “intervenções divinas” dessa voz invisível são tão mais decisivas quanto mais buscam se esconder, podendo tanto fazer referência a uma instância todo poderosa um pouco mais vingativa e manipuladora (estilo Velho Testamento) ou mais compreensiva e preocupada com o além(-filme). Nestes últimos dias estivemos assistindo alguns tipos distintos de exercício desse poder, esse deus ex-machina nas ficções exibidas aqui em Cannes.
Entre eles, o coreano Park Chan-wook é dessas “divindades” que não faz a menor questão de esconder as maquinações pelas quais é responsável, e esse novo Decision to Leave é desses filmes que dobra uma dimensão de complicação por cima de outra e de outra: ao dó de peito de seu roteiro hiper-elaborado, Park soma uma mise-en-scène cheia de construções de pontos de vista e encenações complexas e, finalmente, completa com uma montagem carregada de efeitos. Curiosamente, ao contrário do que pode soar nessa descrição, as três fases estão tão em confluência uma com a outra que acaba que toda essa demonstração de domínio sobre a narrativa pela instância narradora soa bastante orgânica e, embora talvez seja um exagero usar o termo sobre esse filme em específico… simples. Talvez porque, lá no fundo, trata-se realmente de uma história de amor exagerada, na qual todos os floreios narrativos apenas buscam reforçar o quanto ela é sentida pelos personagens.
A forma como a narrativa se estrutura em meio a esse excesso é justamente por um “duelo de manipuladores”, entre o policial e a suspeita que ele investiga e por quem se apaixona, e a brincadeira toda neste “park de diversões” (desculpem) do cinema coreano é saber se quem está mentindo mais num determinado momento ou outro é quem está vendo ou sendo visto. Esse jogo atinge um certo limite, de tanto que parece se satisfazer exclusivamente em reposicionar nossas simpatias de cena em cena. No entanto, nunca deixa de acreditar profundamente na sua própria capacidade de encantar, e isso tem algo de tocante em si mesmo, pois de fato Park é um desses cineastas que nos interessa tanto mais quanto mais a sério parece levar qualquer ideia mais tola em que aposte, pois tem uma inocência bastante sincera no seu desejo de manipulação.
É o oposto do que podemos dizer desse novo filme dos irmãos Dardenne, porém. A essa altura do campeonato, já sabemos decodificar o jogo desses belgas que, desde o final dos anos 1990, pode-se dizer que resetaram as regras para o hiperrealismo no cinema de autor, virando muitas vezes um decalque em si mesmo. No entanto, o que nunca esconderam (salvo para quem não quisesse enxergar, claro) é o quanto suas aparentes narrações de “pedaços de vida” eram estudadas nos mínimos detalhes de roteiro e mise-en-scène para, criando uma elaborada ilusão de realidade capturada enquanto acontece, conseguir traçar os labirintos morais delicados em que se envolviam seus personagens, em busca de alguma libertação e epifania face a realidades das mais duras.
Nos seus melhores momentos, era justamente quando a manipulação construía possibilidades de encontros e de redenções onde pareciam improváveis que havia uma aposta numa complexidade das possibilidades da existência mesmo nas piores condições. Já neste novo Tori et Lokita, o único encontro possível já está dado no título e aconteceu antes do filme começar: o pacto que une esses dois “irmãos” imigrantes africanos na Europa, com a sensação de que só poderão contar consigo mesmos para sobreviver às pedras duras que a sociedade não vai parar de atirar na sua direção por nenhum momento. Poderia ser um ponto de partida profícuo, mesmo nas limitações, mas acontece que as divindades Dardenne apostam que, no caso desses dois personagens, não pode haver redenção, apenas um calvário eterno até a morte.
Algo similar poderia acontecer em termos narrativos no filme romeno Metronom, mas aqui o jogo do diretor Alexandru Belc é de outra ordem: na sua história de um jovem casal de estudantes secundaristas do último da escola, na Romênia de 1972, o que nós vemos é uma protagonista que claramente acredita estar num outro tipo de filme, enquanto o país e seu contexto sócio-político imporão aos poucos o seu próprio roteiro. É uma construção muito sagaz essa, na qual Belc usa tanto do tempo estendido de planos e sequências quanto da elaboração de um sentimento de absurdo que não se entende exatamente de onde vem por uma boa parte da sua duração – até que, finalmente, vem à tona o filme que realmente estamos assistindo. É uma fórmula com algo de bem simples até, mas ainda assim surpreendentemente eficaz na maneira como finalmente, na sequência final, nos joga de novo na tentativa dos personagens em reescrever sua história, reposicionar o seu gênero cinematográfico: infelizmente, para eles, já não é possível, porém. O cinema, e a Romênia, são a sua prisão.
Enquanto isso, na Quinzena dos Realizadores, foi exatamente o oposto o que vimos em dois filmes em sessões seguidas: o francês Thomas Salvador e o português João Pedro Rodrigues usam suas idiossincracias muito pessoais para propor que, sim, é não só possível como desejado, que os personagens usem as suas ficções para a libertação mais completa possível, usando para isso códigos de alguns gêneros cinematográficos que os ajudam nesse caminho (o fantástico no filme francês; o musical e a alegoria no português). São filmes que impressionam por colocarem na tela doses cavalares de frescor e ousadia por caminhos quase opostos.
Fuga da norma e das consideradas adequações sociais sempre foram parte essencial do cinema de João Pedro Rodrigues, e não é diferente nesse divertissement ácido e ao mesmo tempo de grande coração que é Fogo-Fátuo. Assim como no filme de Salvador, surgem menções ao tema da crise ambiental, e aqui inclusive à COVID (um dos poucos filmes da seleção de Cannes 2022 a fazer essa menção, por incrível que pareça), mas aqui esses temas surgem como uma lembrança de que ainda é possível viver em tempos de realidades tão obscuras e apostar que há lugar para a liberdade de criação, de ação, de amar. A maneira incrivelmente solta e quase infantil (não por acaso o filme começa com crianças) de evoluir e fantasiar um mundo em que um príncipe e um (futuro) presidente de Portugal podem viver um amor adolescente sem limites é de enorme engajamento, o que foi comprovado por um dos aplausos mais contentes e liberadores que se ouviu por aqui nesses dias. Um filme libertário, abusado e ao mesmo tempo incrivelmente simples, que nos lembra que nem toda divindade criativa precisa do risco da punição para falar de um mundo em ruínas – há que se imaginar outros, também.
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