Menino 23

Menino 23 é um documentário que retrata a investigação do historiador Sidney Aguilar, após descobrir que em uma fazenda, no interior de São Paulo, havia tijolos com a suástica encravada, os quais não eram muito antigos e, por isso, evidenciavam a existência de um local explícitamente nazista em um período recente da história do Brasil.

No desenrolar do filme, descobre-se que, nos anos 1930, o dono dessa fazenda levou 50 órfãos negros para prestar serviços à família Rocha Miranda, sob o falso pretexto de que os jovens seriam levados para um local onde estudariam, brincariam, e aprenderiam sobre a importância do labor. Contudo, o sonho de um lugar que educa e permite o lazer dos jovens não durou mais do que um ano. Depois disso, as crianças foram apenas escravizadas para prestar trabalhos à família nazista.

Falar sobre a história do Brasil e o desenvolvimento da sociedade brasileira sem falar de escravidão e racismo é, no mínimo, ignorância ou mau-caratismo, afinal, os resquícios do período escravocrata ainda são evidentes em todos os estados brasileiro, nas periferias, nas favelas e, principalmente, nas penitenciárias, mas também podem ser percebidos, de forma mais sutil, porém não menos importante, nas universidades, nas empresas, nos elevadores sociais e de serviço e nos índices de emprego e desemprego, de maneira geral.

A história do Brasil se inicia com a colonização de maneira brutal, configurando-se na base de mentiras, estupros, sequestros, mortes e torturas. Ao passo que as populações indígenas eram escravizadas, se tornavam propriedades dos homens brancos invasores de suas terras, e vagamente dizimadas, homens negros, sequestrados da África, eram trazidos ao Brasil, para exercer o trabalho braçal que os colonizadores exigiam.

Uma vez que os navios aportavam em solo brasileiro, mais do que depressa os escravagistas se livravam dos corpos daqueles que sucumbiam à anti-higiene, falta de alimentação e falta de ar causada pela viagem, e separavam os sobreviventes de seus grupos, garantindo que os africanos não pudessem entender o dialeto dos outros grupos nos quais estavam inseridos e, ainda, perdessem completamente qualquer vínculo com sua cultura original.

Não há registros de quando se deram especificamente as primeiras chegadas de escravos ao Brasil, mas existem teses que indicam que teria ocorrido em 1538, quando Jorge Lopes Bixorda traficou os primeiros à Bahia. A partir daí, foram anos de torturas, humilhações, homicídios, estupros e tantas outras formas de violações de direitos humanos que se possa imaginar, afinal, os negros sequer eram considerados sujeitos de direitos, mas apenas propriedades dos homens brancos.

Os recém-nascidos negros eram fadados a um único destino: a servidão forçada aos seus donos brancos, valendo lembrar que, se fossem mulheres, além de prestar serviços domésticos, cuidando dos afazeres da casa de seus patrões, ainda teriam que cuidar dos filhos dos patrões, se tornando as verdadeiras mães dessas crianças e, em muitos casos, tinham até que amamentar os filhos dos seus “senhores”. Além disso, o dever marital da esposa, que tinha de satisfazer sexualmente seu marido, era estendido às escravas, que eram estupradas diuturnamente.

Após um movimento mundial de reconhecimento de direitos humanos e, consequentemente, fim da servidão, o Brasil se viu obrigado a adotar medidas para colocar fim à escravidão, contudo, insatisfeito com a ideia de extinguir a mão-de-obra barata garantida pelo processo escravagista e, ao mesmo tempo, pressionado pela ameaça de ruptura comercial com o Império Britânico – atual Reino Unido -, que alegou se recusar a continuar fazendo negócios com o Brasil e Portugal, caso não abolissem a escravidão, ao invés de adotar medidas favoráveis ao povo negro, o Império Brasileiro criou as leis “para inglês ver”, que fingiam ser medidas abolicionistas.

Desde o início da escravidão, se prolongando por todo o período abolicionista, até os dias atuais, o que se vê, portanto, é uma série de violações e desrespeitos aos direitos e garantias do povo negro. Não por outra razão, se criou a “lei do ventre livre” como uma das “medidas que indicavam o fim da escravidão”, mas que, na prática, não fazia qualquer sentido, afinal, dizia que, a partir daquele marco, os nascidos filhos de escravo seriam livres, mas seus pais continuariam sendo escravos. Pergunta-se: livre para o que? Como uma criança negra, filha de escravos, que dormem e moram na casa de seus “senhores”, iriam exercer sua dita “liberdade”? Obviamente, era apenas mais uma medida para manter a boa imagem com o exterior, sem qualquer preocupação com as vidas negras.

O desinteresse com os negros se manteve na medida em que, mesmo após o fim da escravidão, em 1888 – sendo a última nação do ocidente a aboli-la -, não foi criada qualquer lei ou garantia à população negra de que, após liberta, tivesse as mesmas condições de conseguir empregos ou educação como qualquer homem branco, sujeito de direitos. Ao revés, a população negra foi objurgada, pelo simples fato de ter conseguido conquistar seu direito mínimo de serem considerados seres humanos, e taxada de rebelde, preguiçosa e foi mantida à margem da sociedade.

Os poucos negros que conseguiam trabalhar, conquistaram empregos em condições degradantes, sem o reconhecimento de direitos mínimos, os quais, aos poucos são conquistados nos tempos modernos – e sempre sofrem o perigo de serem extintos.

A ausência de condições dignas de trabalho aos negros, nos tempos modernos, pode ser facilmente percebida quando se verifica a existência de “dependência de empregada” em apartamentos e casas localizados em bairros majoritariamente brancos, dependências nas quais as empregadas domésticas vivem, dormem, se banham, e são acordadas de madrugada, para responder ao chamado de seus patrões e/ou dos filhos de seus patrões, independentemente de se saber que, enquanto atendem estes chamados, não podem estar atendendo os chamados de seus próprios filhos, em sua própria casa. Não muito diferente do que acontecia com as negras escravas.

É claro que os ignorantes ou maus-caráteres citados no início do texto usam como argumento a existência de direitos garantidos às empregadas domésticas, para dizer que “essa realidade não existe mais”, então vale mencionar: o fim da escravidão, teoricamente, foi em 1888. As mulheres negras seguiam confinadas nas “dependências de empregadas”, longe de suas famílias”, até meados dos anos 2000.

Igualmente, vale destacar que não era dada uma opção a estas empregadas, ao contrário do que muitos alegam. Afinal, você, branco privilegiado, contrataria a mulher que diz ter disponibilidade para dormir em sua casa e servi-lo diuturnamente, ou a que diz que não poderia fazê-lo? Ao mesmo tempo, você aceitaria ficar diuturnamente em seu local de trabalho, longe de sua família, de segunda a sexta, dormindo, comendo e se banhando onde lhe dissessem que você tem que dormir, comer e se banhar, caso essa fosse a exigência do cargo? Ou procuraria outro emprego? Pois bem, a elas não era garantida a possibilidade de “procurar outro emprego”, pois o mercado de trabalho era, e ainda é, majoritariamente branco.

A ausência de preocupação ou políticas públicas que garantissem uma inserção dos negros na sociedade os manteve nas periferias, longe dos centros e, consequentemente, longe de condições para conseguir empregos dignos, salários dignos, ou um mínimo existencial, razão pela qual não é raro ver negros pedintes e marginalizados.

Se, de um lado, é difícil ver políticas pró-negros, de outro, é fácil ver como as políticas anti-negros são aprovadas rapidamente: o Código Criminal do Império de 1830 previa expressamente a tipificação penal de “vadiagem” e “mendicância”, para penalizar todo aquele que não conseguisse uma “occupação honesta e util”.

Obviamente que, após a abolição, inúmeros negros se tornaram mendigos e vadios, já que o Estado não se preocupou em lhes garantir qualquer emprego ou política de inserção social, logo, vários deles foram penalizados, não por serem “vadios” ou “mendigos”, mas simplesmente por serem negros e, consequentemente, não terem conseguido qualquer emprego.

Enquanto no Código Criminal do Império a pena de vadiagem e mendicância era de prisão com trabalho de 8 a 24 dias, já no Código Penal dos Estados Unidos do Brazil, de 1890 (2 anos após o fim da escravidão), a pena aos vadios aumentou para prisão celular de 15 a 30 dias; e, visando especificamente extinguir a cultura negra, tipificou-se o crime de jogar capoeira, cuja pena era de prisão celular de 2 a 6 meses; ao passo em que a prostituição (considerada ato ofensivo ao pudor) e a medicância também eram condutas criminalizadas.

As condutas de vadiagem, ociosidade e prostituição estavam presentes, inclusive, no Código Penal de 1940, tendo sido revogadas há pouco tempo, mesmo estando evidente que a intenção era única e exclusivamente prejudicar as camadas sociais inferiores, agora compostas majoritariamente por negros, mormente descendentes de escravos.

Não demorou muito, obviamente, para a população branca privilegiada, dos confortos de suas residências bem localizadas, iniciar um processo de racismo que se desenvolveu por anos, e até hoje é evidente: os negros eram vistos como criminosos – vadios, capoeiras, prostitutas ou mendigos -, bêbados, drogados e preguiçosos, portanto, qualquer emprego que lhes fosse oferecido, por mais degradantes que fossem as condições trabalhistas, era considerado “um favor” que o branco estava fazendo ao negro.

O acesso às escolas, por óbvio, nunca foi fácil, afinal, morando em periferias, sem dinheiro para o transporte e sem o pai e a mãe em casa, auxiliando a ida dos filhos à escola, a alternativa mais plausível era pedir para a criança mais velha tomar conta da casa e dos irmãos, até  que atingissem uma idade “boa” para começar a trabalhar – valendo mencionar que o trabalho infantil negro é infinitamente maior do que o branco, mesmo hoje, com a previsão do Estatuto da Criança e do Adolescente que veda o trabalho infantil.

Sem escolaridade, não há que se falar em ingresso em universidades, ou disputa igualitária no mercado de trabalho, portanto, a nuvem da escravidão sempre pairou sobre as famílias negras brasileiras, com todo o racismo dela proveniente e perpetuado por legislações que, de forma velada, garantiram o afastamento da população negra do resto da sociedade.

Em um país onde o racismo é tão forte, não seria difícil imaginar que o Chefe do Poder Executivo fosse racista e favorável à supremacia branca, nem seria difícil prever que os pouquíssimos direitos garantidos à minoria negra, agora “livre” e composta por “sujeitos de direitos”, fossem os primeiros a ser violados, para a manutenção de um país branco, movido pelo trabalho negro forçado.

Menino 23 fala exatamente deste contexto: na última nação do Ocidente a abolir a escravidão, que, não surpreendentemente, também é o país que mais importou negros durante a escravidão, foi eleito um político ex-militar da extrema direita, que flertava abertamente com os ideais nazistas difundidos pela Alemanha.

Legitimados pelo discurso nazista do partido político do então Presidente da República, Getúlio Vargas, que, dentre outras medidas, difundia a ideia da eugenia, inclusive prevista na Constituição de 1934, a família Rocha Miranda não mediu esforços para retirar negros de orfanatos e escravizá-los, sem qualquer receio de represália ou pudor.

Vale mencionar que a eugenia da época, então um “dever constitucional” do Estado brasileiro, pregava a seletividade do homem branco como superior e do homem negro como trabalhador braçal, o que era ensinado às crianças negras e brancas, para que, desde sempre, aquelas se sentissem inferiores a estas. Dizia a Constituição de 1934:

“Art 138 – Incumbe à União, aos Estados e aos Municípios, nos termos das leis respectivas: estimular a educação eugênica;”

Neste cenário de negros sendo vistos como inferiores, ocupando a maior parcela dos números de desemprego, mendicância, vadiagem e, consequentemente, o maior espaço das penitenciárias, e sofrendo o estigma por serem taxados como “criminosos” ou “sujeitos de menos direitos”, os ideais nazistas viram um solo fértil para criarem raízes profundas.

Não por outra razão, foi justamente neste cenário que se fez possível uma família de benfeitores de São Paulo, atualmente homenageada com nome de rua, conseguir encarcerar 50 jovens negros para desempenharem trabalhos forçados diuturnamente em sua Fazenda Santa Albertina.

Após a ruptura do Estado com os ideais nazistas e o início da perseguição de todos aqueles que se autodeclaravam nazistas, bem como perseguiam, torturavam e matavam negros ou judeus, a Fazenda Santa Albertina “liberou” os meninos escravizados, agora já jovens e adultos. Contudo, as marcas da escravidão ocorrida em um período pós-abolicionista jamais serão esquecidas por essas pessoas.

Importante mencionar que os resquícios da escravidão não acabaram; o anseio pela supremacia branca não acabou; o racismo não acabou; e, por isso, não é difícil imaginar que um Chefe do Poder Executivo seja racista, favorável à supremacia branca, faça apologias ao nazismo e neonazismo em entrevistas coletivas e notas oficiais.

Igualmente, não é difícil imaginar que um país historicamente racista seja composto por uma parcela enorme da população que flerta com os ideais nazistas, fascistas e de supremacia racial, e, portanto, inconforma-se com as políticas públicas até agora aprovadas que garantem direitos mínimos aos negros, e, consequentemente, seja capaz de repetir a história, elegendo um político ex-militar, da extrema direita, que flerta abertamente com os ideais nazistas difundidos pela antiga Alemanha, e não vê problemas em discursos que pregam a “higienização” da população. 

A grande verdade é que o racismo não acabou. A luta anti-racismo muito menos. 

(Menino 23: Infâncias Perdidas no Brasil, BRA, 2016)
Documentário| Direção: Belisário Franca | Roteiro: Belisario Franca, Bianca Lenti

Leia a Crítica de Cecilia Barroso

Veja o filme na Looke

Sair da versão mobile