A estreia de atriz Paula Braun na direção de longas é o filme que abriu a competição do Cine PE em sua 24ª edição, em caráter singelo e afetuoso. Produzido por Beatriz Seigner (de Los Silencios), Ioiô de Iaiá se aproxima de sete casais para contar suas histórias de amor mais que longevas. Com média de 50 anos em suas uniões, o filme transparece a cumplicidade e os laços que nunca foram desfeitos apesar das adversidades. Afinal, ninguém imagina que dividir meio século de vida é tarefa das mais fáceis né? Sem medo de transmitir as fatias menos felizes desses mesmos anos, o filme é uma reflexão sobre a passagem do tempo em suas inúmeras formas.
A experiência de Paula como atriz deu a ela o dom de ouvir e pouco interferir em seus relatos, deixando a narrativa correr livre sem interrupções e permitindo aos seus personagens um desenvolvimento de suas histórias particulares, que gradativamente vão estabelecendo seu roteiro para o espectador. Com tranquilidade e sem espetacularização, a produção chega de fininho mostrando cada nuance sem invadir intimidades, recebendo apenas aquilo que se quer ofertar, sem exigir nada. Mas com a intimidade entre realizadora e personagens estabelecida, as fissuras sutis se fazem presente e mostram a real face das vidas privadas.
Há um impulsionamento gradual na produção, que segue um caminho muito seguro durante boa parte do tempo. Ao se debruçar em um terreno seguro para seus entrevistados, o filme passeia sem sobressaltos ao investigar essas relações tão duradouras e cheias de um passado que muitas vezes não deseja ser devassado. A liberdade com que Paula os rodeia é bem-vinda ao projeto, dando uma aura de aconchego que alcança quem acompanha cada um dos depoimentos. O tom único de felicidade generalizada obviamente esconde a verdade, que é a própria vida real, muito mais complexa que a felicidade intocada que parece se apresentar.
Mas não basta que o espectador saiba que no mundo de verdade nada é como parece, isso precisa ser significado também em imagens e em narrativa. Depois da metade de sua duração, começam então a saltar aos olhos as mínimas rachaduras que criam naturalidade aos casais que o filme descortina. Aqui e ali, algumas informações são liberadas e uma pequena fresta vai sendo aberta, não que justifiquem conflitos intermináveis, mas que transformam aquelas histórias em material humano de interesse ainda mais evidente, tirando um verniz de edulcoração e levando esses casais a uma zona de normalidade.
Tem um momento específico em que o filme adquire um patamar superior, uma profundidade insuspeita e ultrapassa o material carinhoso apresentado até então, complexificando não apenas aquele casal em detalhe mas todas as relações que o filme apresenta, mostrando que há muito mais por trás do que as aparências mostram – e que sim, elas enganam. A esposa declara que a felicidade que o marido imaginou ter todos os anos de convivência não foi compartilhada por ela o tempo inteiro; ele ri descontroladamente, bastante… até o riso ir diminuindo, e simplesmente desaparecer. No ar, um silêncio sepulcral, e o casal após esse momento desconfortável, sai de cena um amparando o outro. A realidade é muito mais cheia de camadas que um filme poderia captar, mas Paula consegue esse momento que é puro cinema.
É da união entre a absoluta cumplicidade, o bem querer explícito, a ausência absoluta de preconceitos e vaidades, que Ioiô de Iaiá encerra sua projeção, e seu quadro se amplifica em verossimilhança graças a pequenos momentos como esse, a ligação para a filha do casal lésbico, a confissão de cárcere de um dos personagens, e alguns outros. São através dessas rupturas de expectativas que Paula Braun garante suculência a sua estreia para além da delicadeza.
Um grande momento
“eu já quis me separar”
[24º Cine PE – Festival do Audiovisual]