A dança do siriá é uma das mais conhecidas do Pará. Sua origem remonta a uma lenda: no final da tarde, os escravos iam à praia para tentar pescar algo para comer, sem muito sucesso, até um dia em que surgiram centenas de siris. O fato se repetiu e uma dança foi inventada para homenagear a fartura. Por trás dela, lógico, há a música. Dos tambores de sua origem, foi sendo aperfeiçoada com outros vários instrumentos e o maior nome por trás dela é o do musicista e multi-instrumentista Mestre Cupijó. Como a maioria dos gênios no país, Joaquim Maria Dias de Castro nunca conseguiu viver de sua música e morreu sem reconhecimento.
A diretora Jorane Castro, sua sobrinha, reverte o apagamento com o documentário Mestre Cupijó e seu Ritmo. Pensando na inovação como marca da produção do tio e no desconhecimento das novas gerações, tenta unir as duas coisas. Acompanhar jovens musicistas na busca pela origem daquela música e na tentativa de encontrar o ritmo para executá-la é uma excelente premissa, mas o filme é vacilante e as interações não funcionam tão bem como imaginado. Se a confusão de abordagens no começo do filme, quando somos apresentados a Mestre Gabriel Arcanjo de Oliveira, consegue ser revertida pelo carisma dos entrevistados, a relação com os jovens músico não chega a se concretizar.
Falta ao documentário o equilíbrio que Jorane apresentou no ótimo Para Ter Onde Ir. São muitas informações, formatos e tipos de captação que se confundem. Embora apresentem de maneira efetiva o documentado, os recortes nem sempre se encaixam em uma montagem que talvez tenha sido prejudicada pelo vínculo afetivo. Mas o objetivo primeiro está ali e a história do responsável pela modernização de um dos ritmos mais importantes do Pará e o mais importante em Cametá é contada por ele e por seus antigos companheiros na banda Azes do Ritmo.
Mestre Gabriel, que faleceu em maio deste ano vítima da Covid-19, domina a tela em suas próximas aparições, com seu sax ele repete melodias, cantarola músicas, define o siriá e conta como era viver ao lado de Cupijó. Ambos começaram juntos numa banda de festas e acabaram tornando-se inseparáveis na dedicação ao siriá, ao banguê e outros ritmos. As intervenções dos jovens musicistas poderiam render um outro filme, mais focado nesse resgate rítimico, mas não chegam a tirar o interesse genuíno pelo ritmo e por sua história. Acompanhar, ainda que por entrevistas, o incremento de metais, bateria e guitarra; o pensar melódico e a paixão do mestre pela música por mais de 50 anos de sua vida sustentam o documentário por bastante tempo.
Mas outros tropeços surgem pelo caminho, com escolhas de planos e marcações visuais de deslocamento pouco proveitosas ou mesmo a disposição cênica em algumas passagens. Falar de um mestre que misturou tanta coisa para criar algo único talvez tenha influenciado nessa profusão de caminhos, mas, comparando com a música, faltou a linha melódica, aquilo que une as partes em um todo harmônico. A sorte é que a melodia, embora não se reconheça na obra em sentido amplo, está em cada uma das passagens com os antigos integrantes da Azes do Ritmo, até mesmo naqueles que não são de dar muito papo.
E é muito bom conhecer melhor a história de um homem que precisa ser descoberto e reconhecido não só pelo Pará, mas pelo Brasil inteiro como mais um dos gênios da música que expandiu as fronteiras nos anos 1970, mas que foi esquecido pouco tempo depois. Alguém que, como poucos, acessou o tradicional e deu a ele novas cores, com a ajuda de cada um de seus companheiros de ritmo. Conhecer cada uma dessas pessoas e vê-las, fisicamente ou não, no palco, juntos com a nova geração é incrível. É quando os elementos deslocados fazem sentido e qualquer indecisão ou imprecisão deixa de importar.
Um grande momento
Mestres Gabriel e Eulâmpio.