No Other Choice

Seres descartáveis

Park Chan-wook quer falar de trabalho, do capitalismo e do atual estado das coisas. Em seu novo filme, choca e faz gargalhar trazendo o que mais assusta na competição e no descarte. No Other Choice é uma refilmagem de O Corte, de Costa-Gravas, que tem como protagonista You Man-su, trabalhador de uma fábrica de papel descartado depois de décadas de serviço. Depois de um tempo sem conseguir “se reposicionar no mercado”, num gesto tão absurdo quanto coerente com o mundo que o moldou, ele decide eliminar os concorrentes que disputam as mesmas vagas que ele. Publica um anúncio falso de emprego, organiza entrevistas e transforma o ritual corporativo em preparação para massacre. A premissa é engenhosa e tem material para uma boa comédia de humor ácido.

A apresentação de Man-su e sua família define bem o sistema, valorizando o consumo e relações preocupadas com a aparência. A demissão, com aquele vocabulário impessoal das reestruturações, vem seca, administrativa. A expressão “no other choice” (não tivemos outra escolha), usada para justificar o corte, irônica, é o que o empregador diz ao descartar um trabalhador e é o que o trabalhador repete para garantir seu lugar no mercado de trabalho. Man-su é esmagado e a falência do capitalismo surge na descoberta de que duas décadas de lealdade valem menos do que uma planilha qualquer.

Park Chan-woo leva tudo para a comédia. As entrevistas falsas são todas construídas no nonsense. Desde a precisão da seleção à ansiedade das presenças, com tanta esperança alheia envolvida. O humor nasce do descompasso, enquanto todos agem como se aquela fosse só mais uma etapa humilhante da vida profissional, o espectador, consciente, vê o abismo se abrindo sob os pés deles. E o diretor encena essa instabilidade com um rigor que transforma desconforto em riso, até a violência interromper o movimentox.

Porém, a graça ainda continua lá e sempre ligada a uma situação ridícula ou a um gesto patético. A morte aparece como extensão lógica de uma cultura que já elimina pessoas com escolhas aleatórias, filtros automáticos e cortes silenciosos. Lee Byung-hun constrói Man-su como um homem dividido entre vergonha, cansaço e instinto de sobrevivência. Seu corpo é instrumento cômico antes de ser instrumento de violência.

Ao fundo, o neoliberalismo e a automação formam o clima estrutural do filme. Não há vilão tecnológico personificado, há processos que seguem funcionando mesmo quando pessoas são descartadas, algoritmos que filtram vidas e decisões opacas tomadas por estruturas que nunca aparecem. Man-su descobre que foi substituído não por alguém mais competente, mas por algo mais eficiente. A piada amarga é que, ao decidir “racionalizar” a concorrência eliminando seus rivais, ele replica exatamente a lógica de eficiência, corte e enxugamento que o destruiu.

Nada no filme é leve, pelo contrário. A camada íntima reforça essa espiral, deixando tudo mais amargo e mostrando alguém que percebe, tarde demais, que nunca teve real sobre nada. Há tensões familiares, expectativas masculinas frustradas, medos antigos que aparecem nos silêncios, na desconexão com as crianças e nas suspeitas sobre a esposa. O protagonista não é apenas o sujeito ridículo que não se adapta ao novo mundo, cada tentativa de reassumir o próprio destino vira situação cômica fracassada, empurrando-o ainda mais para baixo.

O impacto de No Other Choice vem da convivência de registros. Park Chan-wook constrói uma fábula do absurdo em que o riso nunca é confortável. A precarização aparece colada nos, nas entrevistas constrangedoras, nos pequenos rituais de humilhação que qualquer pessoa reconhece. A comédia está no desajuste dessas situações, na coreografia desastrada de um homem tentando se manter útil num sistema que já o declarou excedente. A violência surge como catarse perversa, arrancando o filme da simples sátira. O filme repete “não havia outra escolha” como desculpa e como ameaça. E esse é o momento em que o espectador ri alto, para logo depois perceber de onde essa gargalhada veio.

Um grande momento
A briga na casa de Bummo

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