Crítica | Festival

Os Arrependidos

Mais uma camada de terror

(Os Arrependidos, BRA, 2021)
Nota  
  • Gênero: Documentários
  • Direção: Ricardo Calil, Armando Antenore
  • Roteiro: Ricardo Calil, Armando Antenore
  • Duração: 83 minutos

A ditadura brasileira, embora pareça um tema frequente em documentários nacionais, ainda não foi revista a contento pelo nosso cinema (e muito menos pela nossa sociedade), Isso justifica – mas não perdoa – o fato de que a narrativa de Os Arrependidos, dirigido por Armando Antenore e Ricardo Calil, permaneça obscura e até desconhecida para muitos espectadores. O desconhecimento, a propalada falta de memória do país e a vontade de esconder esses esqueletos em um armário cada vez mais fundo produz fenômenos como esse desconhecimento, e o posterior clamor pela volta da repressão, uma vergonha atual que a nossa sociedade não cansa de passar.

Esses personagens, os tais arrependidos do título, ficaram conhecidos como tais depois que, durante a luta armada no período da ditadura, foram capturadas pelas forças armadas, torturados, chantageados e, enfim, “convencidos a mudar de ideia”, e vestir uma farsa – a de que teriam voltado atrás em suas práticas, literalmente se arrependido e fizessem uma espécie de tour de entrevistas afirmando como são contrários aos companheiros de luta, como condenam o que já fizeram e como a atitude certa é se rebelar contra suas tendências, ou seja, uma máquina de propaganda contra a guerrilha.

A estrutura do filme é aquela tradicional do documentário padrão, com as típicas cabeças falantes entrecortando imagens de arquivo, as tais entrevistas dos personagens na eṕoca, muitas reportagens especiais e o mais charmoso, a inclusão de muitas propagandas do período, todas ligadas ao contexto de direita, mensagens ufanistas que celebravam um Brasil inexistente. A montagem de Jordana Berg (de Jogo de Cena e Uma Noite em 67) emparelha essas sequências com o rigor que lhe é peculiar, conseguindo um resultado vibrante, que equilibra os elementos utilizados pelo gênero com essas imagens de pesquisa exemplar.

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Os Arrependidos

O filme depende então do impacto da trajetória de seus personagens, e nisso o projeto é muito bem sucedido. Sua narrativa implica em depoimentos ora emocionantes ora impressionantes, sejam pelos horrores descritos ou pela natureza implacável de algumas declarações. Antenore e Calil conseguem se embrenhar por lembranças dolorosas sem explorar os depoimentos de maneira leviana ou exploratória, ao mesmo tempo deixando-os livres e também absorvendo deles os lugares mais recônditos de um tempo inesquecível, pelos piores motivos, alinhando cada fala a um bloco que se conecta inteiro.

Sem deprimir sua produção, mas mantendo o peso necessário a uma discussão cuja pertinência acaba de se fazer presente outra vez, Os Arrependidos impressiona pela eloquência de seus entrevistados e pela força de sua própria denúncia, em um tema que parece sempre render novas e cada vez mais aterradoras camadas. Essa pesquisa que os cineastas apresentam jogam luz sobre nova perspectiva a respeito da ditadura, que também se associou às pessoas que tentavam destruir para que a dissolução do movimento acontecesse por dentro, uma ideia das mais cruéis possíveis.

O filme ainda guarda pra si esse espelhamento entre as ações do passado e o resultado a elas, como herança do presente. O que cada um daqueles homens transmite em cena é reflexo de um passado onde eles mesmos não tiveram opções, que não as forçadas; eles passaram por todo horror, o que abdicaram e o que aprenderam com seus feitos, parece marcado em cada rosto, e também nas ausências, e nos relatos para as mesmas. Os Arrependidos é mais um registro histórico de um tempo passado que precisamos continuar lutando para declarar que não deve voltar mais.

Um grande momento
O desfecho de Massafumi

[26º É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários]

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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