Entre as muitas diversões em uma maratona mostreira, uma delas é a possibilidade de construir conexões entre os filmes que foram assistidos. Nesta edição, foram apenas 40, e diversos foram os caminhos traçados dentro da minha cabeça, mas uma temática recorrente há várias mostras, desta vez me chamou mais atenção: a maternidade.
Ainda não sei se trouxe algo pessoal para dentro das salas, se passei a enxergar diferente agora que os meus dois filhos são oficialmente adultos, se é a síndrome do ninho vazio que anda se aproximando. Talvez não tenha sido nada disso, e a temática tenha aparecido mais mesmo, ou de um jeito diferente. Quem sabe seja o resultado do notório aumento de mulheres nas cadeiras de direção ou assinando os roteiros ou por uma necessidade dos homens que ainda estão ali de olhar para essas realidade de um jeito diferente. Jeito diferente, não, de olhar, né? Porque antes nem olhavam.
Bom, com a origem ainda a ser analisada no divã ou pesquisada mais a fundo, a verdade é que este é um cinema que costuma se repetir e a 43ª Mostra de São Paulo trouxe, dentro dos títulos selecionados, relações maternas muito especiais e algumas delas chamaram a minha atenção. Algumas positivas, outras nem tanto; umas marcantes, outras marcadas. Relação primeira, pelo menos biológica, de qualquer ser humano, existe alguma coisa de vínculo eterno esperado socialmente. Não que seja algo obrigatório, mas na realidade cristã ao menos, onde a manutenção do poder passa pela constituição da família e por esse lugar pré-estabelecido da mulher, é bem real.
Porém, ele pode se encontrar em tantas variações e isso depende completamente da realidade em que se encontra aquele núcleo familiar. Há o tradicional e o que está fora dos padrões, que se constitui em novas regras e se ajeita do jeito que pode, encontrando novos caminhos de afeto por meio de relações tão fortes quanto aquelas esperadas. Entre laços sanguíneos e escolhas, é o amor que liga essas pessoas e que faz com que a facilidade e a dificuldade de estarem juntas construam as relações. É lindo olhar para tudo isso.
Da que se nasce e a que se escolhe
Para começar escolhi um filme que tem seu ponto forte no desvendar dessa relação entre mãe e filha. É o baiano/pernambucano Casa, documentário pessoal corajoso de Letícia Simões, onde a mesma aceita a exposição para entender quais são os laços que unem as mulheres de sua família. A narrativa que parecia tão própria, torna-se curiosa nas conversas pós-sessão, ouvindo vários relatos de identificação das várias pessoas presentes. Em maior ou menor grau, todas ali já passaram por algo assim.
Há uma outra coisa que eu particularmente gosto muito no filme que é o como ela trabalha esse embate geracional entre filha – mãe – avó, as dificuldades que se perdem entre neta e avó e o quanto isso incomoda quem está no meio, tanto por sua relação com um lado quanto com o outro.
Mostrando que os laços familiares podem transcender a determinação genética, vale falar do belíssimo A Vida Invisível, um longa que toca a maternidade de maneira muito especial. Ao separar as duas irmãs, Guida e Eurídice, o patriarcado estremece as relações estabelecidas, deteriora a maternidade por um lado, também invisibilizando-a, e a fortalece por outro. A que vai, perde; a que fica, não. Mas a perda é temporária, pois o contato com a maternidade acaba por fundar uma nova família, uma família escolhida, com Filomena, sua nova mãe. Tudo tratado de uma maneira bela e delicada por Karim Aïnouz.
Entre outras ausências
Essa espécie de substituição, um pouco mais biológica, acontece no divertido e solar longa juvenil brasileiro Alice Junior, de Gil Baroni, que conta a história de uma youtuber trans que precisa se mudar do Recife para uma cidadezinha de interior no sul do país que não está nem de longe preparada para ela. Tendo perdido a mãe muito novinha, é seu pai, um químico perfumista quem desempenha esse papel e a relação dos dois é linda.
Teve também o lidar com a ausência da mãe com o diferente, interessante e desbocado Tristeza e Alegria na Vida das Girafas, que conta a história de uma menina tentando superar a morte precoce da mãe no cotidiano, em interações com seu amigo imaginário, um urso de pelúcia gigante que fala palavrões sem parar, e com seu pai, ainda mais enlutado do que ela. O filme de Tiago Guedes consegue ser ingênuo sem deixar de ser duro, até pela temática que aborda e traz essa perda de referencial, o é para qualquer idade, imagina para uma criança, e a dificuldade de lidar com esse desaparecimento eterno.
Outra ausência doída é aquela inversa, no caso, uma que está prestes a acontecer. Em Dente de Leite, uma adolescente está em seus últimos dias depois de um longo tratamento de um câncer terminal. O filme indie assinado por Shannon Murphy tem uma aura inesperada para o tema e se preocupa em destacar as cores das descobertas dessa menina, mas sem esquecer que ali no background tem a presença marcante de sua mãe, num misto de incompreensão geracional, cheio de conflitos naturais para a idade, e o deparar-se com a perda iminente.
Mas que já chegamos em ausência, e aqui podemos falar de abandono também, temos que falar de um dos mais impactantes filmes desta edição: System Crasher, de Nora Fingscheidt. O longa traz a história de uma menina que por causa de traumas não consegue controlar a raiva e tem ataques de fúria, sendo expulsa de vários abrigos. A mãe, ausente, não sabe lidar com a situação específica, mas isso reflete na relação com os filhos mais novos também. Um filme duro, que fica na cabeça da gente por muito tempo.
Expectativas frustradas e relações complexas
Filmes que falam sobre mães que depositam suas expectativas frustradas em seus filhos podem ser clichês. Mas não é porque são clichês que não estão ali bem próximos da realidade. Na verdade, são clichês porque podem ser reais até demais. Neste ano, um filme traz isso com um amargor bem contundente: Lara. A mãe, no dia do seu aniversário, foi a única a não ser convidada para o concerto de seu filho pianista que também não faz a questão de falar com ela. O longa acompanha este dia na vida desta mulher, deixando ao espectador a possibilidade de construir a história prévia que levou tudo até ali.
Outro que fala de frustração, mas aqui tem outras questões e talvez esteja naquele ponto de não querer ver a filha no mesmo lugar que o seu, é o Deus É Mulher e Seu Nome É Petúnia, um libelo maravilhoso contra o machismo e sua manutenção, aquele que está escondido e é incentivado por costumes e tradições. Uma dessas incentivadoras do patriarcado é a mãe de Petúnia que inclui em suas preocupações a importância de “arrumar um homem bom”, mas não só isso. A relação das duas é muito maluca, cheia de cobranças e incompreensões quanto à mudança de paradigmas. Bem curioso.
Outro filme que também está nesse lugar de expectativa por um outro futuro, ainda que aqui com algumas moedas em troca, é o A Verdadeira História da Gangue de Ned Kelly, de Justin Kurzel, que, como uma ópera rock, além da história do mais conhecido fora da lei da Austrália e seu bando, ainda fala de sua origem e de sua relação com a mãe durona. As tradições e gritos de guerra podem até ser irlandeses, como era o pai de Kelly, mas a mãe foi uma influência fortíssima, como são as de todas as mães.
O curioso é que por onde quer que se ande, embora as relações sejam específicas e os contextos muito diversos, as realidades são muito similares. Você sair de uma sessão de um documentário brasileiro e encontrar a mesma informação em uma ficção da Macedônia, ou sair e encontrar personagens australianos repetindo as passagens de alemães que acabaram de ser vistas é muito interessante, uma experiência que só um festival do tamanho da Mostra é capaz de proporcionar.
Quanto aos temas, eles são humanos, aleatórios. Como me chamaram a atenção para escrever esse texto, chamaram dos realizadores, mas vários outros podem ser encontrados entre os mais de 300 filmes. Qual teria sido o seu?