Mais uma vez passeando pelas possibilidades temáticas que um evento de cinema como a 43ª Mostra de São Paulo é capaz de oferecer, nos deparamos com a devastadora constatação de um mundo que não é um lugar para todos. Cruel com seus habitantes, escolhe aqueles que melhor viverão, submetendo outros ao descaso, invisibilidade ou ao tratamento hostil.
Vamos começar pelo passado, no Brasil de 1930, Era Vargas. Em 1932, imperavam políticas ditatoriais de segregação e higienização. No Nordeste, miseráveis vítimas da seca eram confinados em “currais”, título do documentário de Sabina Colares e David Aguiar, e abandonados à própria sorte. Este passado que deveria ser lembrado constantemente, estudado nas escolas, porém, foi esquecido. Assim como no filme, está preso em mídias ultrapassadas e pouco acessíveis, sendo conhecido por muito poucos. O resultado da ignorância, como se sabe, é a repetição. Repetição que chega camuflada agora, em movimentos que rejeitam qualquer proximidade entre classes e que fazem com que novas políticas de rejeição e privação de direitos comecem a ganhar forma. Basta abrir o jornal para ver.
O problema é global. Está aqui e está em todos os lugares do mundo. Com vieses diferentes, execuções diversas, acomete sociedades excluindo, minando e eliminando. A incapacidade de olhar para o próximo e reconhecer sua humanidade tornou-se algo natural em um mundo sem barreiras e ultraconectado. É o contrassenso da modernidade, o paradoxo que faz com que os indivíduos cada vez mais se voltem para si e se preocupem menos com o coletivo e com o todo. Não há mais acolhimento, apenas exclusão e a diferença é o tom que impera, principalmente quando se trata de alguém que é diferente de você.
É o caso de Synonymes, filme israelense de Nadav Lapid que acompanha um homem perdido em sua própria identidade. Como esse ser que não se reconhece num mundo que já não tem mais delimitações regionais, que afirma e rejeita suas origens ao mesmo tempo e sente-se pertencente a uma realidade que o rejeita em um grau que ele não consegue enxergar. Tratando de xenofobia e da questão da colonização e usurpação, coloca a Europa no centro de uma discussão migratória urgente e necessária. Ao fazer isso com alguém de origem israelita, o povo sem terra, mas orgulhoso de sua origem, aumenta a potência de sua mensagem.
De lá, ainda pensando no despreparo da sociedade para lidar com os seus, é possível chegar a System Crasher, pancada de Nora Fingshcheidt, que traz uma criança com graves transtornos psicológicos como protagonista. Traumatizada na primeira infância, ela não consegue controlar a própria raiva e segue sendo descartada por várias instituições, sonhando em voltar a morar com a mãe, mas sem que esta consiga pensar na possibilidade. Diferente de Synonymes, há no filme alemão pessoas que realmente se dedicam a solucionar o problema que toda uma sociedade opta por rejeitar.
Outro que sente a rejeição da sociedade é o piromaníaco Amadeo, de O que arde, de Oliver Laxe. Depois de cumprir sua pena, ele volta para a casa da mãe para passar uma temporada e, como isso acontece durante uma queimada, é prontamente acusado pelos moradores do local. O filme galego tem várias questões fundamentais, fala do desmatamento, do interesse de grandes empresas, de descaso com o meio ambiente e de uma sociedade doente, que rejeita aquilo que é mais fácil rejeitar. Mesmo vendo o que acontece, volta-se ao elo mais fraco, aquele que é possível quebrar, como que numa necessidade de afirmação. Algo que só não é de uma crueldade e covardia extremas porque há muito de manipulação por trás de qualquer movimento como esse.
Do campo para a cidade, como não falar de Parasita, novo hit do momento já em cartaz nos cinemas brasileiros, dirigido por Bong Joon-ho. O filme fala de algo que conhecemos muitíssimo bem por aqui. Aqueles que estão à margem da margem, ou sob à margem, no caso. A cidade que exclui, torna periférico e obriga à aceitação de um sistema viciado e benéfico apenas para uma ínfima minoria. Esta minoria é a que, desde muito cedo, diferencia, afasta, invisibiliza e impossibilita. “Eles têm o mesmo cheiro” diz o ainda muito pequeno Da-sung numa repetição daquilo que aprende com os pais. E há níveis de invisibilização e crueldade, uma ordem absurda na exclusão. Devastador.
Por falar em periferia, e ficando aqui no Brasil, vale falar do documentário Diz a Ela que Me Viu Chorar, de Maíra Bühler, que volta suas lentes ao antigos hotéis sociais criados durante a prefeitura de Fernando Haddad. Nele um dos grupos mais excluídos da sociedade brasileira atual, os usuários de crack, demonstram o seu dia a dia. O filme escancara, principalmente na relação de seus personagens e a plateia, a dificuldade de conexão com aquelas pessoas, pois é sempre mais fácil fechar os olhos e fingir que o problema não existe. A cartela final informa sobre o fechamento dos locais pelo prefeito João Dória e um novo abandono a esta parcela já abandonada da população.
O tema é amplo e muitos outros filmes entram, em maior e menor grau, em contato com ele. Entre indivíduos ou grupos de indivíduos, a dificuldade de viver em sociedade segue sendo a mesma e a facilidade de excluir também. Em um mundo tão vasto, cheio de possibilidades e recursos, muita coisa – quase tudo – fica para uma pequenina parcela, que não quer ver ninguém perto de seus privilégios. A culpa não é do mundo, é da raça humana. Ela, definitivamente, não deu muito certo.