Crítica | Outras metragens

Extermínio

Documento sobre a perda e o apagamento de identidades

(Extermínio, BRA, 2021)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Mirela Kruel
  • Roteiro: Mirela Kruel
  • Duração: 73 minutos

Aos 19 anos, Nickole era moradora do interior do Rio Grande do Sul, mais precisamente Cachoeiras do Sul, e fazia parte de um núcleo de mulheres transexuais da cidadezinha, que se unem e acabam por dividir suas dores enganchadas por uma situação de prostituição compulsória. Infelizmente Nickole entra para as mais desoladoras e revoltantes estatísticas brasileiras, aquela onde pessoas LGBTQIA+ são assassinadas mais que em qualquer outra parte do mundo, especialmente as mulheres trans. Extermínio trata sobre a morte dessa jovem menina especificamente pra alcançar essa situação de maneira macro.

Mirela Kruel, diretora do amplamente premiado Catadora de Gente, está na seleção de longas gaúchos do Festival de Gramado desse ano e cria um leque de discussões acerca de um tema que é mais que é sério, de maneira nada didática e muito empática. Em seu curta metragem laureado já tínhamos percebido o talento da diretora para essa dissecação de um universo particular que se amplia para uma condição social mais ampla, que reflete para além de sua protagonista. Aqui, Nickole é a um só tempo um indivíduo ceifado de maneira torpe, e também reflexo de um país desigual e desumano na tentativa de se observar o que não é o próprio espelho.

O foco de Extermínio é duplo, e isso serve para que conheçamos os dois lados de sua protagonista ausente – o íntimo e o público. Os pais de Nickole, a relação que eles mantiveram com essa filha antes e depois de sua transição, seus anseios e inseguranças diante de um universo que eles sequer faziam ideia do que era – pessoas dos mais interioranos rincões do país, que fique claro. Em outro registro, quatro de suas amigas, que discorrem não apenas sobre ela, mas sobre a situação que todas dividem e as particularidades que cada uma delas agrega em cena. Todo esse painel é rapidamente comprado pelo espectador, que se conecta à humanidade de cada um em cena.

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Esse é o mérito principal e já testado anteriormente de Kruel, sua capacidade de capturar o que de mais humano há em cada relato, em cada feição, em cada direcionamento verbal de cena, seus desdobramentos e as descobertas, frívolas ou intrincadas, de cada personagem, dissecando assim uma menina que nunca veremos agir diretamente para a sua câmera, e também uma classe cada vez mais unida e de voz reverberante para compensar sua contínua tentativa de apagamento social. Quando uma de suas personagens se despe por completo e revela sua condição atual, percebemos o grau de sensibilidade da autora com seu universo, sem perder jamais a capacidade de realizadora.

Porém, Extermínio é uma peça documental datada, que utiliza os dispositivos mais básicos do documentário para apresentar seu material – depoimentos posados, imagens de arquivo pessoal e tentativa de dramatização poética, que funciona às vezes e em outras, não. Todo o envolvimento que conseguimos enquanto espectadores do filme, na desolação estampada no rosto de um pai destroçado em uma melancolia esmagadora, é refém de uma proposta segura de cinema, que se não atrapalha por completo a fruição do material, tampouco se eleva enquanto olhar fílmico – Kruel se vale exclusivamente do componente emocional que seu talento desenvolve com seus personagens.

Ainda que possa ser acusado de exploratório e horizontalizado em seu tom, a denúncia proposta pela diretora não pode ser negada porque os assassinatos de pessoas queer não estão apenas na minutagem de filmes, mas ocupam páginas centrais de cadernos policiais, isso quando há espaço para tais. Enquanto houverem novas Nickoles sendo massacradas por nossa sociedade homofóbica e hipócrita, um filme como Extermínio terá seu valor, e seu espaço precisa ser exaltado.

Um grande momento
“ela nos deixou tudo”

[49º Festival de Cinema de Gramado]

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Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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