Crítica | Streaming e VoD

Surto

Sem redenção na selva

(Surge, GBR, 2020)
Nota  
  • Gênero: Suspense
  • Direção: Aneil Karia
  • Roteiro: Aneil Karia, Rupert Jones, Rita Kalnejais
  • Elenco: Ben Whishaw, Ryan McKen, Victor Olamide, Jasmine Jobson, Bogdan Kominowski, Nish Nathwani, Laurence Spellman, Muna Otaru, Perry Fitzpatrick, Michael Jenn
  • Duração: 105 minutos

Há quase 30 anos atrás, o filme Um Dia de Fúria, dirigido por Joel Schumacher e que competiu no Festival de Cannes, caiu como uma bomba no circuito, provocando uma discussão social sobre as neuroses das grandes cidades, destruindo seus moradores. Foi acusado de justificar as ações do personagem vivido por Michael Douglas, que teria entrado em colapso em decorrência das guerras do qual participou; muita gente diminuiu a produção por dar justificativa à sua explosão e assim delimitar o alcance de sua mensagem. Surto, estreia do Premiere Telecine, volta a focar nesse personagem cuja sociabilidade é gradativamente desconstruída, até parecer que só deseja ser liberto de todo aquele horror diário.

Protagonizado por Ben Wishaw (de Perfume), o longa busca não justificar nem sua apatia inicial nem sua explosão posterior, quando segue agindo pelas ruas de Londres sem promover as respostas adequadas para seu estado de espírito. O filme passou pelo festival de Sundance e pelo Festival de Berlim em 2020, e sua presença no nosso streaming é uma prova de que filmes interessantes e importantes estão perdendo o espaço no cinema para que seja ocupado por produções cada vez maiores e de conteúdo duvidoso. Dentro de casa e quase escondido, um filme sobre a histeria coletiva do qual continuamos à mercê pede a sua atenção.

Surto
BBC Films

O diretor Aneil Karia está estreando em longas metragens, mas tem um currículo de muitos curtas e episódios de séries, e está indicado ao Oscar desse ano de curta de ficção, The Long Goodbye. Sua carreira parece muito bem encaminhada, e o filme é um grande espetáculo do diretor e suas qualidades, que ressignifica a tensão diversas vezes para apresentar um novo lugar para seu protagonista, que segue narrativa afora cometendo atos inexplicáveis, depois de sofrer uma pressão psicológica de todos os lados – no emprego como segurança de aeroporto, na casa dos pais, e mesmo na rua, Joseph é posto à prova e chega ao seu limite.

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O filme tem uma montagem muito elegante, porque a todo momento Karia testa na produção os limites do plano-sequência, inclusive tendo um de mais de 10 minutos muito inventivo, onde precisa entrar e sair de estabelecimentos e marca o início da ruptura do personagem. Como o filme se arvora por esse terreno da linguagem ininterrupta, e que faz sentido para acompanharmos onde exatamente Joseph se perde, tanto a direção quanto a montagem envolvem o espectador em uma zona de crise, onde nunca podemos prever o próximo passo. Sua inadequação com quem trata faz com que nunca consigamos prever qual será seu próximo momento de descontrole, trazendo assim uma carga de inquietude constante.

Surto
BBC Films

Ao recusar dar maiores curvas dramáticas ao pico de surto do protagonista, o roteiro de Karia e também Rupert Jones e Rita Kalnejais compra uma situação inusitada. Ele não responde a perguntas que deixariam a narrativa mais conclusiva e por isso mais pobre, porque centraria sua voz em uma direção única quando na verdade o interessante é possibilitar todas, mas a incongruência que produz quando nada é comprometido deixa a situação tão vaga a ponto de atrapalhar o desempenho de Wishaw, que vez por outra parece um alucinado inconsequente. Faltam dados que verbalizem, ainda que de maneira sutil, a série de acontecimentos em cena, e do jeito que ficou nada parece muito verdadeiro.

Apesar de tudo, o filme eleva seus momentos de angústia diante da câmera imprevisível de Karia, muito mais consistente do que o roteiro propõe e do que o próprio ator implica. Não que não existam grandes momentos dele, principalmente quando se reúne aos pais – e tem uma cena na cozinha onde ele e Ellie Haddington destroem tudo – mas o grande destaque de Surto, que acaba realçando as qualidades do elenco e tentando enxugar as deficiências da narrativa, é a direção inspirada e cheia de camadas, que parece entender muito mais o estado de coisas que quer contar do que o resto de sua produção.

Um grande momento
O roubo da moto

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Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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