- Gênero: Drama
- Direção: Thomas Vinterberg
- Roteiro: Mogens Rukov, Thomas Vinterberg
- Elenco: Ulrich Thomsen,Thomas Bo Larsen, Paprika Steen, Henning Moritzen, Birthe Neumann, Trine Dyrholm, Therese Glahn, Helle Dolleris, Bjarne Henriksen, Gbatokai Dakinah, Klaus Bondam
- Duração: 105 minutos
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Ano que vem, Festa de Família faz 25 anos. É incrível que já tenha se passado tanto tempo, que a obra seminal de Thomas Vinterberg comente tanto sobre um cinema muito específico daquele período, que corresponda tanto a uma fatia do cinema dinamarquês que mesmo ele já desgarrou, e ainda assim permaneça tão intacto. Talvez tenha a ver com a própria obra do seu autor, que é constantemente assolada por uma urgência e uma assertividade diante do contemporâneo, mesmo quando não tão inspirado. Ao olhar para o 1998 e o 2022, pouco parece ter corrido numericamente para o Cinema; historicamente, esse mesmo Cinema não existe mais, da forma mais literal possível.
O Cinema constantemente é acusado de misantropia, e muitos desses dedos apontados têm origem na Dinamarca. Pois bem, há, sim, muita amargura desmedida e exacerbada em relação ao Homem no cinema que muitos realizadores almejam. Ao meu ver, no entanto, uma parte considerável dessa adjetivação poderia ser substituída por realidade. A crítica se incomoda com um excesso de “mundo cão” no que a Europa teria ido beber, ou constantemente bebe ao longo dos tempos. Vejamos o caso de Festa de Família, por exemplo. Revendo o filme para a produção desse texto, tenho a impressão que o Dogma 95 pode até ser um rastro esquecido hoje, mas narrativamente pouco ou nada mudou nas relações familiares, fora do cinema, principalmente, mas a coragem de expôr como está aqui, quem mais teve?
Antes de investigar o teor de sua natureza fílmica e estética, cabe um aparte sobre o movimento supracitado, creio. O Dogma 95 foi criado por cineastas dinamarqueses nos anos 90, encabeçados por Vinterberg, Lars Von Trier, Lone Scherfig, o fotógrafo Anthony Dod Mantle, até mesmo o americano Harmony Korine, entre outros. Consistia basicamente em uma visão menos decupada de cinema, mais crua – ou pura. Abolia trilha musical, utilização sonora externa à filmagem, existia sem assinatura de seu autores, sem qualquer tipo de valor mecânico de pós-produção, entre outras regras. Rendeu um grupo de umas duas dezenas de produções, mas fez barulho suficiente para que os trabalhos posteriores de seus integrantes, ainda que longe dos ideais do Dogma, resplandeçam um artesanato diferenciado, de uma certa precariedade naturalista, em paralelo aos seus pares.
Retomando Festa de Família em particular, há algo na textura geral do filme que engloba não apenas o que as regras do movimento pediam, mas que carrega até ele uma crueza e um despojamento que o aproxima de reuniões muito factíveis. Em outras experimentações “dogmáticas”, existia uma intenção de desmascarar o que poderia facilmente ser feito dentro de poluições de gênero. O que Vinterberg propõe aqui é que suas ranhuras imagéticas tragam um plus verossímil para o projeto, porque essa família filmada é exatamente tantas outras famílias. Não é à toa que esse grupo seguia o diretor, e até hoje ainda segue com frequência; o conceito de núcleo familiar aí até extrapola os laços sanguíneos, que se concentram na ficção.
Faz muito sentido que uma família fílmica se encontre então filmando uma família real, que é e ao mesmo tempo não é nada real. É, porque sua provocação quase documental nos coloca diante de pessoas reais e valorizadas em suas circunstâncias; não é porque evidentemente há o teatro em cena, que encena toda aquela tragédia anunciada. E como filma através de cada escrutínio íntimo de seus integrantes, a produção parece constantemente dar uma volta tremenda para nos forçar a documentar uma possibilidade de encontro, como tantos já vimos – sem os escombros tão escondidos em penumbras, ou com. Todas as famílias estão em cena, em cada um dos rancores milimetricamente encenados por um outro tipo de união, no caso, artística.
Festa de Família, com todo seu aparato social correndo livre, e uma tentativa meio debochada de soar naturalista de uma forma quase oposta ao que de fato seria o naturalismo, percebe-se hoje se tratar muito mais de uma farsa comportamental do que necessariamente um objeto cênico verité. Há verdade indelével no que estamos vendo, mas essa verdade trata muito mais de uma forma lógica de cinema do que necessariamente de um lugar onde suas ações e demarcações gostariam de soar críveis. O organismo criado pela produção funciona como um todo dentro de sua redoma, mas não é ele um mecanismo para sugestionar verossimilhança diante do registro do mundo – no máximo, de “um registro de um mundo”, específico ali.
Dentro daquele sistema, cabem muitos registros – e a ironia, dentro do que se propunha no tal manifesto do Dogma 95, é Vinterberg praticamente não esconder sua vontade de gênero. Há um fantasma em Festa de Família, e ele não cansa de ser citado e acessado, por outros personagens e pela própria narrativa. Linda não está mais de corpo presente no espaço familiar, mas é provavelmente ela a figura que motiva os eventos do filme, e não apenas no plano físico. Seu corpo foi encontrado exatamente naquele mesmo lugar por sua irmã, uma das muitas pessoas atormentadas por essa partida não-totalmente concretizada. A figura de Linda só é visionada muito tempo mais tarde, em misto de sonho e delírio, mas sua presença provoca desconforto, impacto e medo, em sequências onde inclusive ela é invocada.
Provavelmente o gesto era genuíno, mas igualmente era sua rebeldia típica de uma juventude que ficou registrada no passado. Hoje, o que resta de Festa de Família são coisas ressignificadas pelo tempo; o hiperrealismo importa menos em revisão, tendo em vista inclusive suas já citadas características de confronto com sua estrutura prévia. Acabou envelhecendo bem melhor do que poderíamos imaginar, já que a tessitura do “acerto de contas familiar” já não era nova naquela data, e datou-se ainda mais. Na superfície jaz esse grupo de pessoas prestes a elencar novas falhas, crimes e atitudes hediondas, e que já elas passarão por uma reconfiguração de olhar dentro do núcleo; mergulhando mais profundamente, surge uma produção desmontada da moldura onde nasceu.
Os aspectos comportamentais de seus tipos, que refletem idiossincrasias particulares e contradições humanizadas, são diminuídos quando percebemos que está em jogo menos um formato tradicional narrativo que é vendido assim, com algum sarcasmo. Temos Thomas Vinterberg em absoluto controle de um inflamado jogo cênico, servido como iguaria deturpada do cinema convencional ou tradicional, para emergir como uma mola propulsora de nonsense imagético-narrativo. É material intrigante pelo que parece propor, e pelo que eventualmente oferece, duas camadas tão próximas quanto contrastantes; está em jogo a apreciação média de um roteiro sobre dilaceração moral, em colisão com uma anedota fílmica de gosto diferente do que se imaginava. O cinema sacaneando o cinema.
Um grande momento
Procurando por Linda no quarto
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