Crítica | CinemaDestaque

Meu Bolo Favorito

Surpresas pelo caminho

(کیک محبوب من , IRA, FRA, SUE, ALE, 2024)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Maryam Moghadam, Behtash Sanaeeha
  • Roteiro: Maryam Moghadam, Behtash Sanaeeha
  • Elenco: Lili Farhadpour, Esmail Mehrabi
  • Duração: 93 minutos

Se existem os filmes que se alimentam da ânsia do espectador por uma virada de roteiro (os plot twists), existe uma outra categoria de produção onde a surpresa ininterrupta não está decalcada em um momento específico, mas em sua gestão geral. Que isso esteja impresso em uma produção iraniana justamente em semana tão exemplar desse cinema no Brasil – onde também teremos a estreia de A Semente do Fruto Sagrado – já se configura como um primeiro sopro de novidade da produção. Meu Bolo Favorito é uma caixa de surpresa que se apresenta de maneira humilde, com o tradicional naturalismo empregado nesse cinema. Aos poucos, a produção se mostra menos dependente de obrigações de qualquer ordem, o que o mostra mais provocador que o filme de Mohammad Rasoulof. 

É difícil conseguir se desvencilhar do ritmo que a dupla de diretores Maryam Moghadam e Behtash Sanaeeha (de O Perdão) propõe, e que sofre algumas mutações ao longo da curta projeção. Tudo o que assistimos parece esquematizado para um viés que é constantemente ressignificado por uma nova marcha de cadência. O espectador segue, ao longo de Meu Bolo Favorito, com uma ideia reiterante de recomeço, como se a experiência fosse renovada a cada bloco de eventos. Isso é a mola que impulsiona o que assistimos, que não se furta em irromper com alguma frequência o que está sendo descrito. Tanto nas relações que estabelecemos com os personagens quanto na dinâmica particular que eles desenham, o filme cria essa dinâmica que não é absorvida por completo até seu desfecho, porque seguimos procurando um porto seguro que o filme não dá.

Essa cadeia de motivações não trai o espectador, porque são simplesmente motivações reais de possibilidades do roteiro, e não ideias tresloucadas, apresentadas para a diversão dos autores. O que cabe entre tais desdobramentos é uma espécie de saída inesperada, muita mais por um esquema corajoso de embarcar na violência onde outros poderiam manter um status de pureza à essa redoma. Essa análise é feita posteriormente ao que o filme apresenta, depois da sequência de lombadas naturalistas que Meu Bolo Favorito apresenta. Durante a jornada de conhecer a rotina de sua protagonista e uma Noite Chave de Sua Vida, o que temos é a sensação de embarcar em uma tempestade de areia, perdendo a noção da realidade, mas que se conecta em coerência e responsabilidade.

A verdade é que, diferente do que poderíamos achar conveniente, o filme desenha sua realidade, seus sonhos, suas novidades, sem contar com algum delírio. Temos uma demonstração real a respeito da terceira idade, mas principalmente sobre a postura de uma mulher de mais de 70 anos diante das oportunidades. De muitas maneiras, Mahin é uma mulher transgressora para a sociedade iraniana, que não mede esforços para mostrar seus desejos de maneira explícita. Esse é um dos motivos pelo qual Meu Bolo Favorito é uma experiência tão especial, porque ele não se atém a transformar sua narrativa em um espaço de justiça, mas sim em um quadro concreto. 

Ou seja, essa é mais uma curiosidade que une A Semente do Fruto Sagrado a Meu Bolo Favorito: ter um roteiro tão debruçado sobre questões femininas em uma nação e em um momento onde tais questões têm gerado conflitos civis. Enquanto no provável indicado ao Oscar tais cenas são quase documentais dentro do que estava acontecendo naquele lugar, aqui a liberação é mais bem sucedida, até por ser alcançada individualmente, com sutilezas. Mahin apenas sente que sua vida chegou a um ponto de estagnação, e decide que um novo capítulo só será iniciado partindo de si. Após acompanharmos sua rotina de maneira breve, o filme passa a focar em um dia único onde a ação irá ocorrer, sempre com desdobramentos que nos induzem a um pensamento específico, no qual o filme fará questão de mudar, cena a cena. 

Criando no espectador uma dependência pela próxima novidade, Meu Bolo Favorito marca uma virada nos filmes produzidos no Irã que chegam até nós, sempre muito carregados de densidade e sisudez. Aqui, o que move o roteiro é a extrema leveza com o qual todos os assuntos são encarados, ainda quando tais direções de seu conceito não sejam necessariamente suaves. Talvez esse seja um aprendizado que Maryam e Behtash deixem, ao fim da sessão – a liberdade pode ser adquirida de muitas formas, e a mais conhecida delas é a luta. Isso não impedirá alguns indivíduos de propagar mudanças e reflexões através da serenidade. 

Um grande momento
Mahin e Faramarz dançam 

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
Assinar
Notificar
guest

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

0 Comentários
Mais novo
Mais antigo Mais votados
Inline Feedbacks
Ver comentário
Botão Voltar ao topo