- Gênero: Comédia, Drama, Documentário
- Direção: Julia Mellen
- Roteiro: Julia Mellen
- Elenco: Julia Mellen
- Duração: 13 minutos
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Parte tudo do elemento estranho já a partir do título, Festa do Aborto. Exibido dentro do Lumen Festival, não é incomum encontrar um filme com essa nominação e suas categorizações particulares, de formato, estrutura narrativa e afins. Mas ainda assim nos pega de supetão entrar na sessão específica; encontrar, enfim, o filme que Julia Mellen dirige, escreve e protagoniza é uma nova camada da coisa toda, e nenhuma anula a outra ou a canibaliza. O todo é contribuído para inúmeras discussões que acontecem na nossa frente sem qualquer pedido de licença. Ao término, uma enxurrada de coisa aconteceu na tela e, cinematograficamente falando, muito pouca também – mas tudo isso é somente a superfície do que vimos, e que pode ser o grande acontecimento da primeira edição do festival.
Da mesma maneira que a apresentação se mostra (e se prova) simples, a narração empregada, a história que está sendo contada, e a disposição de entrega que sua autora experimenta, é tudo da ordem do surpreendente. Porque não se imagina que algo de aparência tão modesta desemboque em uma proposta de potência (palavra proibida por colegas chatos pela seu excesso, mas aqui não cabe outra expressão) tão evidente. Festa do Aborto é um relato tão cru quanto mordaz, que resulta em uma experiência coletiva de identificação não pela narrativa, mas pelo espanto do que é contado, em sua textura mais surreal. Paralela à verbalização, existe uma exploração do material digital em uma forma propositadamente tosca, que se revela um achado para o projeto, e que cabe na forma desenvolvida.
Na tela, temos Mellen contando uma passagem de sua vida, e é isso, por menos de 15 minutos. É só isso e isso é muita coisa, porque o causo em questão sugere uma discussão praticamente a cada novo minuto, a começar pelo título e pela hipocrisia que gera na sociedade uma Festa do Aborto. A partir do desconforto que o convite que ela envia a amigos proporciona um debate, o filme se desdobra para lugares cada vez mais sofisticados narrativamente, indo ao processo de liberdade de escolha feminina, em um quadro de letargia da juventude atual, no chocante desprendimento que decisões tão radicais podem provocar – e não estou falando de aborto, aqui. Todo o caldeirão apresentado produz um olhar hilariante sobre uma passagem aguda corpo de uma mulher, onde a comicidade é buscada pela própria autora.
A cineasta brasileira-estadunidense residente em Madri está ininterruptamente na tela, inserida em uma animação de visual mal renderizado de computador que reproduz uma espécie de The Sims do mundo bizarro. Essa animação reproduz o que está sendo contado com coragem por Mellen, que sofre de sincericídio profundo, e não tem qualquer subterfúgio para contar as contradições que a formam. Tamanha entrega rende automática identificação e igual estupefação, quando o corpo de uma mulher ainda não pertence a ela, mas ao Estado. Quando essa disposição é ameaçada por um universo patriarcal, sua autora banca sua verdade radical até as últimas consequências com uma inegável simpatia.
A rápida experiência provocada por Festa do Aborto não abafa sua explosão de informações. Estamos diante de um provocação cheia de ironia e feminista, fúria disfarçada de comédia e uma vontade profunda de encontrar um lugar em um mundo que não seja esse que está por aí e habitamos. Mellen, logo na primeira conexão com sua obra, mostra que não está disposta a render-se ao mesmo olhar que cerceia suas convicções; ela prefere colonizar um novo mundo de párias e se juntar a eles nos esforços de povoar um mundo menos quadrado em todos os sentidos. Ao fim, existe tanta catarse no que vemos quanto no que explode dentro de nós; são séculos de cabresto e obediência que não serão mais doutrinados. Filmar o que quiser e da forma que quiser, e também reconfigurar o próprio corpo como uma máquina de reprodução de novas verdades.
Um grande momento
Os 13 minutos


