Crítica | Festival

A Batalha da Rua Maria Antônia

O tempo rodou num instante

(A Batalha da Rua Maria Antônia , BRA, 2023)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Vera Egito
  • Roteiro: Vera Egito
  • Elenco: Pâmela Germano, Isamara Castilho, Juliana Gerais, Caio Horowicz, Gabriela Carneiro da Cunha, Philipp Lavra, Valentina Herzsage
  • Duração: 80 minutos

Para um assunto que geralmente é tratado de maneira menos eficaz e menos frequente do que socialmente seria imaginado, a ditadura apareceu em 2023 em tantos filmes e de qualidades tão disparatadas que impressiona pelo volume. Como diria o meme, Meu Nome é Gal, Ainda Somos os Mesmos e Entrelinhas andaram para que A Batalha da Rua Maria Antônia pudesse correr; o último, que era a melhor produção a tratar do assunto no ano, cede lugar ao segundo longa de Vera Egito, que saiu do Festival do Rio com o Redentor de melhor filme e uma passagem igualmente consagradora pela Mostra SP 2023. Forma e conteúdo se unem para contar uma história que está em livros e no wikipedia, mas que ainda não tinha tido o requinte audiovisual demonstrado aqui, que mostra muito de um talento que a diretora gestou durante tantos anos de projeto – 14. 

Egito só tinha uma incursão anterior na direção, o pouco interessante Amores Urbanos, e o que acaba por realizar aqui a coloca em outro segmento de ocupação da nossa filmografia, que agora passa a olhá-la com merecido interesse. Embora possa ser apontado que um exercício de mise-en-scene esteja em curso aqui, há má vontade nessa observação, e pouca elaboração do que a diretora pretende dramaturgicamente. Embora sim, A Batalha da Rua Maria Antônia seja sim um material que eleve sua cadeira como diretora (e não deveria ser sempre assim?), a autora Vera Egito está igualmente disposta na realização, criando um núcleo de situações e sendo suficientemente humana, desenvolvendo conflitos internos, criando uma malha de dramaturgia onde não escapa potência. 

Talvez possa ser acusada de não conseguir desenvolver na totalidade os talentos de tantos profissionais na frente das câmeras, ou mais precisamente seus atores, mas isso passa longe de diminuir os méritos do elenco coletivamente e de sua entrega na totalidade. É uma vitrine pouco convidativa a um arroubo singular, porque A Batalha da Rua Maria Antônia desde sempre demonstra sua força através do que a unidade de escopo trás para o projeto. Não é apenas o talento exclusivo de Egito que está na frente dos olhares, mas a planilha organizacional que permitiu que tantas coisas surpreendentes fossem feitas em tantas áreas e acabaram por gerar esse filme. Ou seja, a diretora não pode ser acusada de nenhuma outra coisa que não a de entregar um belo trabalho de, vejam só, direção. 

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A Batalha da Rua Maria Antônia, a essa altura, já teve sua estrutura divulgada à exaustão: são 21 planos-sequência numerados, situados em 2 de outubro de 1968, dia onde os alunos da faculdade de Filosofia e Letras da USP e seus vizinhos do Mackenzie levaram às últimas consequências as provocações dos meses anteriores, terminando em um confronto armado de término fatal. Rodado em um preto e branco granulado que remete de imediato a nouvelle vague e com um senso de urgência que não é fácil de alcançar, a ideia de provocar um retorno àquele tempo é assolado pelo nosso próprio, que vê a volta desse tipo de ação de parte a parte. Com a ascensão do fascismo e o crescimento da extrema direita, palcos como os do centro de São Paulo do auge do regime militar parecem querer acordar. Pensado há quase 15 anos, o filme não poderia ser mais atual e chocante na forma como um recorte de um tempo tão demarcado da realidade parece uma ficção científica que não saiu do lugar. 

Em meio a um objetivo que poderia resvalar no mecanismo puro, ainda que cercado de cuidadosa reconstituição imagética, o que surge de A Batalha da Rua Maria Antônia é um tônus de realidade impresso pela humanidade encerrada em cada passagem. Nós conhecemos uma Lilian, uma Angela, um Benjamin, nós conhecemos aquelas pessoas porque eles foram bem desenvolvidos pelo roteiro, e criados com garra por seus intérpretes em performances desiguais, mas que juntas provocam a amplitude necessária para seu voo. O material humano em cena, que inclui os experientes Caio Horowicz, Valentina Herszage e Gabriela Carneiro da Cunha, agrupa tais personagens em um contexto de tensão crescente, mas sem jamais perder de mão que cada decisão tomada em cena conversa também com seus personagens. Não são jovens dispostos a um futuro melhor para o país, mas essencialmente jovens. 

Egito intercala nos capítulos diferentes investigações, dando ênfase ao espírito do tempo (que tempo?, hoje?) de um lado, e do outro se aprofundando nas relações pessoais entre aqueles personagens, alunos ou professores que se integram em um momento partido. Assim como se sobressai a obviedade lírica do ‘Roda Viva’ circular, também enche a tela que a câmera nervosa de William Etchebehere siga seus personagens por esquinas que constituem cada curva do cenário, ininterruptamente descobrindo novas paredes ou novas paixões. Aliás, esse é um elemento que sobra a A Batalha da Rua Maria Antônia: paixão. Tesão. Está nos olhos de cada célula arrepiada de ação, está na pele dos muitos amantes, está na maior parte dos frames desse filme especialíssimo, que denuncia tanto quanto fascina. É a mensagem lado a lado com o maravilhamento deslocado enfim do foco real, e saltando com energia na nossa direção. 

Um grande momento

5

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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