Crítica | Festival

Galinha

A galinha que viu demais

(Hen, ALE, GRE, HUN, 2025)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: György Pálfi
  • Roteiro: György Pálfi, Zsófia Ruttkay
  • Elenco: Ioannis Kokiasmenos, Maria Diakopanigotou, Argyris Pantazaras, Antonis Kafetzopoulos, Antonis Tsiotsiopoulos, Nikos Kattis, Dimitris Pelekis
  • Duração: 96 minutos

György Pálfi sempre foi um diretor fascinado por corpos fora de lugar. Em Taxidermia, esses corpos se estendiam até o grotesco; em Galinha, eles se reduzem ao que o título indica, literalmente. A estranhamento é inevitável, mas dura pouco tempo, porque logo se percebe que o jogo continua o mesmo: o diretor quer falar do que há de animal na humanidade e, ao mesmo tempo, a denuncia. A galinha que foge da granja, vaga por um restaurante e observa as pessoas como se fosse a única criatura lúcida do lugar é a metáfora viva de um mundo domesticado demais para perceber o próprio absurdo.

O primeiro gesto de Pálfi é de libertação visual. Galinha é filmado do nível do chão, com câmeras adaptadas para enxergar o mundo como o animal o veria. O horizonte nunca está no alto e o céu é sempre um recorte distante. A textura da película é densa, o som se mistura ao barulho das penas e os planos são longos trazendo uma serenidade estranha e incongruente com os eventos. O espectador, acostumado ao olhar humano dominante, é obrigado a reaprender a ver. O resultado é uma sensação física de confinamento, mesmo em espaços abertos: tudo parece cercado, mesmo quando as cercas não estão ali.

A história se desenvolve como fábula e alegoria social ao mesmo tempo. A galinha escapa e, por acaso, vai parar em um restaurante onde se escondem outras formas de violência, como o tráfico humano e o trabalho análogo à escravidão, em um ciclo de exploração que une homens e animais na mesma cadeia de consumo. Não há panfleto, há ironia. A montagem sugere o paralelo sem ser óbvia. E é justamente nessa ambiguidade que Pálfi demonstra sua maior habilidade, ao fazer com que o humor e a crueldade se equilibrem, assim como o grotesco e o belo.

O simbolismo chega fácil, e é pesado. A fuga da galinha é a fantasia da liberdade em um mundo que já não acredita nela. O animal que corre em círculos, que busca um ninho que não existe, encarna a própria falência da utopia moderna. Há um eco existencial ali. Não é à toa que, em vários momentos, a câmera parece hesitar entre seguir o bicho ou desistir. O filme, assim como sua protagonista, anda em círculos. Mas é um círculo que tem sentido.

Quando Pálfi decide dar voz ao absurdo, numa cena em que o cotidiano humano invade a narrativa com risadas, ruídos de cozinha e conversas banais, o filme encontra seu ponto máximo. A galinha, imóvel, apenas observa. Mais do que isso, em seu olhar mudo há um julgamento. Ali, o filme acusa e, talvez por isso, seja tão perturbador, pois transforma uma simples ave em testemunha, em consciência. O riso que surge é desconfortável, culpado pela proximidade de uma identificação de espécie.

Através do inusitado, Pálfi reencontra o poético, e, no final das contas, Galinha é cinema raro; experimento e também experiência. O filme é cruel, engraçado, hipnótico e profundamente triste, mas, acima de tudo, é cinema vivo. O olhar da galinha, fixo, interrogativo, fica com o espectador muito depois da sessão.

Um grande momento
Ela olha para nós

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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