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A Garota da Vez

Independente dos monstros

(Woman of the Hour , EUA, 2024)
Nota  
  • Gênero: Suspense
  • Direção: Anna Kendrick
  • Roteiro: Ian McDonald
  • Elenco: Anna Kendrick, Daniel Zovatto, Tony Hale, Nicolette Robinson, Pete Holmes, Autumn Best, Kathryn Gallagher
  • Duração: 90 minutos

Existe uma história por trás do roteiro escrito pelo novato Ian McDonald para a estreia A Garota da Vez. Ele estaria numa “lista famosa” (e que de vez em quando algum filme trás a tona) a respeito de grandes textos ainda não filmados e/ou considerados impossíveis de levar às telas. Quando assistimos o resultado final desse empenho, suas qualidades ficam claras, mas não é exatamente esse o aspecto que faz a diferença no tratamento geral. Em um momento de brilho para o cinema de gênero, como há muito não víamos com tamanho volume, a produção é mais uma a elencar 2024 entre as mais bem sucedidas investidas na área. Com muitas camadas e subdivisões, o grupo que reúne filmes de terror, suspense, thrillers em geral, ficções científicas e policiais é um guarda-chuva que abriga muitas vozes, tantas delas dissonantes, mas se alguém desconfiar, a princípio, que não se trata de um exemplar aqui, recomendo deixar o desenvolvimento acontecer. 

A Garota da Vez, é bom deixar claro, não tinha como ser dirigido por um homem, mas que ele seja a estreia surpreendente de uma atriz que se prova igualmente surpreendente em suas escolhas, isso faz dele ainda mais suculento. Anna Kendrick, atrás das câmeras, parece ter nascido para comandar algo assim, tendo construído um arcabouço tanto emocional quanto profissional ao longo de sua carreira que aproxima sua voz e de seus pares a um uníssono. Se tem uma pitada de malícia em sua abordagem, e outra também de denúncia generalizada, a atriz tornada diretora não deixa sobressair em quantidade nada além do que sua necessidade febril de contar essa história. Que é bizarramente factual, em esquema daqueles “tão absurdo que só faria sentido se tivesse acontecido de verdade”. 

Indicada ao Oscar por Amor sem Escalas, Kendrick não nega recursos em seu campo de origem, mas o brilho que demonstra e proporciona vai além do que poderia apresentar a si mesma como atriz. Generosa como poucos enquanto intérprete, mas com uma gana de apresentar tais imagens, A Garota da Vez consegue um resultado híbrido para sua artista, que a eleva. O resultado é que acompanhamos uma atriz compenetrada, que sabe o seu lugar e apresentar suas armas, e em paralelo uma diretora em chamas, aditivada por elementos muito comuns ao que pode ter definido sua trajetória, e possivelmente, a de tantas outras colegas suas. Porque, no lugar da naturalidade que não cabe a um bom suspense, a apresentação que se faz a respeito do horror que se materializa na relação entre homens e mulheres, seja esse lugar pessoal ou profissional, é assustadoramente crível. E palpável, e comum, infelizmente. 

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Não é somente segurança que Kendrick expressa através do que realiza, mas uma carga de conhecimento estético e uma consciência diante do que está produzindo. Estamos falando de uma atriz que conhece os meandros de Hollywood, e que já experienciou muito do que sua personagem experimenta em cena – o descaso, o assédio, a desqualificação, o desamparo, a angústia de entender quando os caminhos não se abriram. A cena onde uma outra personagem tenta denunciar a descoberta do assassino de sua amiga, a espiral de eventos que ocorrem, e a conclusão na qual chegamos com essa semana, é das situações mais tristes que o filme mostra, e estamos falando de um filme repleto de tristeza. E não é se referindo ao contexto histórico apresentado, mas em perceber os ecos que tais lugares ainda promovem, quase 50 anos depois. 

No rigor técnico que elenca, A Garota da Vez se aproxima do que de melhor o movimento setentista lançou, em uma explosão de energia que poderia ser atribuída a algum autor da Nova Hollywood. A direção ainda agrega a tais valores de produção um senso de urgência pulsante, seja na tela ou fora dela. Não tem a ver com metaforizar o que vemos entre os chamados “eventos reais” uma linha de raciocínio que conecte aqueles eventos, a uma realidade atual. Porque a própria textura dos diálogos (muito bem delineados), o relevo do roteiro e a configuração dos planos, atestam a barreira que separa a gravidade dos fatos. Isso é envolto por, entre outros, uma atuação carismática e muito sutilmente sedutora de Daniel Zovatto, que Kendrick consegue ainda moldar muito bem, porque nos revela micro detalhes de construção imagética desse personagem cena a cena. Seja em seu sorriso ou na forma como a modulação se arma para apresentar tal tipo, de cavalheiro a assassino, no qual voltamos a acreditar na cena seguinte ao “último ataque”. 

E como já dito, é a direção de Kendrick que faz a mágica acontecer. Parte dela a fagulha setentista que o filme banca, é de suas mãos que tantos crimes sejam cometidos contra personagens rápidos e que nos importemos tanto com seus desfechos, é através de seu olhar que o protagonista seja esse amálgama entre horror e desejo. Tal qual Zoe Kravitz em seu Pisque Duas Vezes, é plantada no espectador uma semente curiosa em relação a seu futuro enquanto realizadora, e a vontade incontornável que temos de conhecê-la mais, enquanto diretora. Mas diferente de Kravitz, que monta um palco onde a forma é uma ponte para as sensações, Kendrick faz de A Garota da Vez um turbilhão emocional raro, que mostra o quanto estamos perdidos em nosso ideal de sociedade, independente de seus monstros. Que todo esse gancho sensorial seja conseguido também graças ao detalhismo de sua mise-en-scene, é um trunfo que a diretora revela aos poucos. 

Um grande momento
No estacionamento

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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