Antes de mais nada: evite ler qualquer coisa que esteja sendo divulgada, mesmo a sinopse, de A Ligação – o spoiler está rolando solto. Dito isso, parece que você já viu esse filme antes… vocês lembram daquele Alta Frequência, com Jim Caviezel e Dennis Quaid, onde pai e filho se comunicavam através de um rádio transmissor mesmo separados por anos no tempo? Parece que o diretor coreano Lee Chung-Hyun assistiu a essa produção americana no passado e modifica o quadro geral em sua estreia na direção, que chega agora na Netflix, elevando o conceito, ampliando as possibilidades e saindo do campo dramático para adentrar o sombrio do humano.
O radiotransmissor deu lugar a um telefone comum e residencial e une duas jovens, uma em 2020 e outra em 1999. Young-sook está no passado e consegue fazer ligações para sua própria casa no futuro, onde mora Seo-yeon. De semelhança entre elas, vidas absolutamente marcadas por tragédias pessoais e uma realidade entre a melancolia e a depressão por conta de tantas perdas. Quando graças a interferências da primeira a realidade da segunda sofre uma reviravolta inimaginável que rompe com os limites entre o tempo e a realidade, o filme acende um pavio de acontecimentos que aos poucos vão definindo e redefinindo a vida de ambas.
Fomos ensinados por filmes como Efeito Borboleta que não se pode mudar o passado em viagens no tempo porque as consequências da alteração dos fatos podem ser fatais no futuro; A Ligação não tá nem aí pra isso, e esse é um de seus fascínios. Não há limites para as mudanças, tudo que se imagina concreto agora pode deixar de ser ali na frente, e o filme não se acanha de sacrificar personagens, realidades e sonhos para provar sua tese e observar o nascimento de duas personalidades que parecem afins, se mostram antagônicas, para então deixar vazar nas entrelinhas suas conexões paralelas.
Demonstrando talento para qual gênero seu filme aponte interesse, Chung-Hyun desdobra uma série de elementos da carpintaria narrativa do cinema para envolver o espectador, seja alimentando tensão, emoção ou diversão. É um trabalho que não é exclusivo seu ou de seu roteiro, mas que se alarga por uma fotografia que radicaliza em cores e filtros para conceber diferentes épocas, estados de humor, momentos emocionais onde são acessadas válvulas díspares no espectador graças à luz conseguida, e também a montagem e a direção de arte, que trabalhando junto a equipe efeitos especiais e de maquiagem, conseguem um visual sempre arrebatador para a produção.
Nada seria eficiente à altura se o elenco certo não tivesse sido escalado, o que não é o caso. Um grupo que se entrega com muita veracidade, A Ligação é capitaneado por duas jovens atrizes que só exacerbam seus talentos, Park Shin-Hye (de #Alive) e Jun Jong-seo Jun (de Em Chamas). Praticamente sem contracenar diretamente e muito dependentes de um fone por boa parte da produção, ambas têm graus de complexidade elevados e ambas comparecem com energia e expressividade já vistos nas duas antes, mas aqui o alcançado é quase descomunal; são duas personagens muito agudas, muito arriscadas, muito sedutoras, e responsabilidade também delas o espectador não conseguir piscar por quase 2 horas.
Engraçado que, no fim das contas, A Ligação seja, para além do formidável passatempo e do repleto de cuidado com sua realização por parte de cada profissional envolvido, também um estudo sobre a criação de personagens desde a gênese, passando por possibilidades de definir suas personalidades e compreender o que é inerente a nós e o que foi conseguido enquanto produtos dos nossos meios, que somos.
Um grande momento
Poderiam ser vários, mas… Young-sook vai a estufa