Crítica | Streaming e VoDCríticas

Quatro Gerações

Reescrevendo a própria dor

(Cici, TUR, 2022)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Berkun Oya
  • Roteiro: Berkun Oya
  • Elenco: Yilmaz Erdogan, Nur Sürer, Funda Eryigit, Okan Yalabik, Ayça Bingöl, Olgun Simsek, Fatih Artman, Incinur Dasdemir, Sevval Balkan, Artun Can Salman, Çagla Naz Kargi
  • Duração: 148 minutos

Conversando ontem com minha editora sobre o cinema turco (devemos especificar esse pensamento de cinema como aquele que a Netflix vem produzindo, ou não?), chegamos a uma conclusão a respeito dessa cena específica que temos nos aproximado nos últimos anos, por conta do streaming. A despeito de muito da sua influência ainda reverberar um cinema popular, de matriz mais próxima de títulos de apelo sem nicho, essa cinematografia vem criando uma sofisticação insuspeita, ainda que esse processo venha na base da ‘tentativa e erro’. Esse último lançamento, Quatro Gerações, é a prova da veracidade desse diálogo, uma produção que ao longo de suas quase 2 horas e meia, não faz outra coisa que não surpreender o espectador, tal qual Na Sinfonia do Coração ou O Festival dos Trovadores; confiram ambos.

Esse é o segundo longa-metragem dirigido por Berkun Oya, o primeiro em 15 anos. A julgar pela experiência com Quatro Gerações, que ele não passe nem mais 15 meses para lançar uma produção nova. Também escrito por ele, o filme é redondo como geralmente fazem os autores iranianos, mas não deixa de beber na bacia do seu maior expoente, Nuri Bilge Ceylan (Palma de Ouro por Winter Sleep). É um cinema com um tempo particular, mas cujo ritmo parece inquebrantável; sucinto e ao mesmo tempo decantado, a história de uma família por dois tempos diferentes é espelho para o próprio cinema, que é a base do que acontece aqui, enquanto realização e enquanto ferramenta narrativa, criando uma miríade de paralelismos que enriquecem a obra. 

No Brasil, esse título acabou nos dando mais uma camada. Isso porque existem apenas três gerações em cena, e não quatro. O que nos leva a crer que, num arroubo de poesia extra fílmica (mesmo, porque o título original do filme, ‘Cici’, significa bonita em turco), a tal quarta geração é representada pela metalinguagem, já que acompanhamos a história daquela família também a partir do que é registrado pela câmera. Explica-se: um dos protagonistas de Quatro Gerações está realizando um filme sobre os eventos da sua infância, logo existe um outro grupo de atores representando os personagens. Esse tal quarto grupo de existências é então representado pelo cinema em si, e que bizarramente faz sentido, tendo em vista todas as fatias de sobreposições que o filme apresenta. 

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Cena do filme turco Quatro Gerações
Netflix

Quatro Gerações é um filme que parte desse núcleo familiar para contar uma história de renúncias, de prisões sem grades, dos ressentimentos que se escondem em laços familiares por décadas. O mais bonito é que, por trás de toda a mágoa e a angústia que (des)uniu essas pessoas, existe o fazer cinematográfico. Ele já está nas frestas desde o início, quando imagens sobrepostas imaginam outra versão da história, mais limpa e pasteurizada. Aos poucos, identificamos que aquela é a versão em celulóide da realidade, que vai invadindo de soslaio a narrativa até ocupar o espaço por completo, e nos fornecer ao final momentos não revelados do passado, criando a situação inversa – a vida invadida pela arte, que na segunda parte é redescoberta pela vida. 

Em sua metade seguinte, o filme é atravessado pelo cinema, pura e simples, e é o cinema que funcionará como código revelador – sem qualquer intenção, diga-se. Para o espectador, o que passa a valer é em como tudo o que é visto então passa a incorporar registros da metalinguagem, explicitamente. São costuras de planos e imagens que revelam não apenas a força imagética de Quatro Gerações, mas seu poder de comunicação com a cinefilia, através de suas decisões estéticas. O filme mergulha na imagem filmada para revelar o cinema por trás dele, assim como sai dessa imagem para diagnosticar o oposto – o que vemos não é a realidade, mas uma versão filtrada dela pela lente. Levando em conta que nem um documentário está livre da moldura que o cinema opera no que é filmado, retirando qualquer naturalidade pretendida, o filme perpassa camada por dentro de camada, nos levando para um lugar particular e pouco explorado, mesmo dentro da ousadia. Veja a cena onde Kadir é enquadrado como em uma tela de cinema, para em seguida ser revelado que aquilo é apenas uma janela de sua casa, onde Yusuf o vê – e Yusuf passa então a ter sua imagem registrada como a de um projecionista na cabine do cinema. 

É como os registros dos primórdios de Abbas Kiarostami se amalgamassem com algo o próprio Ceylan, para filtrar em planos uma realidade que parece e é posada, explodindo para fora do registro de filmagem e afetando não apenas o espectador, mas quem filma. Essa ideia de reconfiguração narrativa passa pela filmagem da cena onde a mãe se interpreta, ou pelos olhares sobre a mesma entre uma nova geração de mãe e filha, que o filme captura mas a personagem, não. É um jogo até típico, de projetar no cinema os resultados que a vida precisa conseguir e não consegue, longe dele. No entanto é tudo costurado de maneira arguta, com seu roteiro (até simples em sua armação temporal) colocando todas as peças certas no lugar. Por fim, o elenco de Quatro Gerações é tão absolutamente conectado que fica difícil destacar alguém, quando todos brilham por igual, e transformam esse em mais um grande produto vindo da Turquia. Tô até com medo do próximo… 

Um grande momento

A cena de Cemil 

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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