Direito em Cenas

A Morte e Vida de Marsha P. Johnson

No mês do orgulho gay, mais do que falar apenas de gays, lésbicas ou bissexuais, nós precisamos destacar a importância deles e delas, que estão na linha de frente na luta pelo reconhecimento dos direitos dos gays, que levantam suas bandeiras da forma mais genuína e corajosa que a militância exige, eles e elas que, assim como Marsha P. Johnson, têm suas vidas ceifadas por não aceitarem caberem nas caixinhas que a sociedade impõe: os(as) transgêneros.

O documentário A Morte e Vida de Marsha P. Johnson retrata um pouco da realidade vivida e sofrida pelos transgêneros, destacando todos os crimes de ódio cometidos contra a vida dessas pessoas, que se consumam desde atentados às suas dignidades sexuais, honra e imagem, até seus homicídios.

Além de trazer belos retratos do dia-a-dia da luta de Marsha, e do medo por ela sentido quando identificou que a máfia estava lucrando em cima dos poucos bares gays existentes àquela época, A Morte e Vida de Marsha P. Johnson ainda destaca a rotina de Victoria Cruz, ativista e amiga de Marsha, que não se conformou com o laudo pericial que constatou que a morte da amiga teria sido suicídio, mas, ao revés, decidiu investigar por conta própria o ocorrido.

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Outro nome importante que aparece em A Morte e Vida de Marsha P. Johnson é o de Sylvia Rivera, precursora do famoso movimento anti-homofobia na revolta de Stonewall, que seguiu na linha de frente nessa luta, que causou a morte e o encarceramento de diversos gays, lésbicas e transexuais, mas assegurou que, hoje, nós, LGBTQIA+ privilegiados, pudéssemos andar livremente pelas ruas, pedindo nossos direitos de nos casarmos ou recebermos previdência, enquanto foram elas, as precursoras, foram quem nos asseguraram nosso direito de estarmos vivos e de sermos quem somos, sem medo de amar ou de apenas existir.

São os relatos de Sylvia que evidenciam a necessidade e urgência de se falar não apenas sobre os homossexuais cisgêneros, mas também de falarmos sobre transgêneros, um grupo excluído dentro do próprio movimento LGBT e, principalmente, pela sociedade heterossexual, que, portanto, não encontra apoio para simplesmente existirem, mesmo quando foram eles e elas os ativistas que permitiram todo o movimento anti-homofobia por todo o mundo.

A Morte e Vida de Marsha P. Johnson, 2017

Diante da falta de representatividade, é imperioso destacarmos alguns conceitos básicos: transgêneros são as pessoas que nascem com determinado sexo biológico (uma genitália definindo se seu sexo é feminino ou masculino), mas não se identifica com seu corpo. Por exemplo: o indivíduo que nasce com um pênis e tem todas as alterações hormonais causadas em indivíduos do sexo masculino, mas que se identifica como feminino; ou uma pessoa que nasce com genitália e hormônios femininos, mas se identifica como masculino.

Dentro do conceito de “transgênero” estão abrangidos os transexuais e os travestis. Transexuais: o homem ou a mulher que se identifica com o sexo oposto, geralmente tendo a sensação de que nasceram em um corpo errado, razão pela qual se submetem a tratamentos hormonais e/ou intervenções cirúrgicas para alcançar o corpo com o qual se identifique; Travestis: nasce com o corpo de um gênero, mas se identifica com o outro, sem se submeter a intervenções cirúrgicas, mantendo seus órgãos genitais.

As drag queens, por outro lado, não se confundem com transexuais ou travestis, uma vez que são uma forma de expressão artística, consistente em uma pessoa que se monta para apresentar determinado personagem ao público, valendo mencionar Ru Paul e Pabllo Vittar como drags famosas.

Não é demais explicar, ainda, que gênero não se confunde com sexualidade, razão pela qual não é correto deduzir que um indivíduo transgênero seja homossexual: uma mulher trans (nasceu com seo biológico masculino, mas se idenfica com o sexo feminino) pode ser homossexual e, portanto, gostar de outras mulheres; heterossexual, e relacionar-se com homens; bissexual, e gostar de homens e mulheres; etc.

A Morte e Vida de Marsha P. Johnson, 2017

As simples conclusões equivocadas de que mulheres e homens trans são “menos mulheres” ou “menos homens”, porque não nasceram com o sexo com o qual elas se autodeterminam já evidencia a ignorância coletiva e a dificuldade de uma sociedade heteronormativa como a nossa (aqui, incluindo todas as nações) em identificar e respeitar indivíduos que não se amoldem aos conceitos e determinações previamente estipulados pela maioria desta mesma sociedade.

Assim como verificamos a necessidade de constantes debates jurídicos sobre o reconhecimento de direitos aos homossexuais, uma vez que a sociedade ainda não reconhecia explicitamente a figura das pessoas e entidades familiares homo, também é latente a necessidade de falarmos e reconhecermos direitos aos transexuais.

Vale mencionar que, no ordenamento jurídico brasileiro, em que pese haver algumas vitórias do grupo LGBTQIA+, por exemplo, o reconhecimento do casamento gay, ainda há muito retrocesso no que concerne aos direitos dos transexuais, simplesmente porque eles não se adequam aos moldes pré-estabelecidos pela sociedade e são rechaçados e reprimidos pela sociedade.

Não por outra razão, há quem defenda que transexuais não podem integrar equipes desportivas do sexo com o qual se autodeterminem, nem podem usufruir dos mesmos banheiros que pessoas cisgêneros, ou tampouco exercer o direito à intimidade, quando casam, uma vez que seriam “obrigados” a contar para seus parceiros que não são cisgênero.

A Morte e Vida de Marsha P. Johnson, 2017

A luta dos transgẽneros, portanto, precisa receber enfoque neste mês de reconhecimento do orgulho gay, mesmo porque o “T” da sigla “LGBTQIA+” tem um significado e por trás desse significado existem milhares de Marshas, Sylvias e Victorias, que lutam e morrem pelo reconhecimento de direitos básicos, como o direito de viver, existir, ir e vir, amar e serem respeitadas.

Os debates trazidos à baila pela comunidade transgênero integram diversos âmbitos do direito, mas sempre tendo como fundo o direito constitucional, fundado na Constituição Federal, que nos assegura o direito à vida; direito de ir e vir; direito à inviolabilidade da integridade física e moral, da honra e da imagem; à dignidade da pessoa humana e o direito implícito à felicidade, reconhecido a não muito tempo pelo Supremo Tribunal Federal como um direito básico de todos os indivíduos.

Neste contexto de preservação da integridade física, moral e da dignidade da pessoa humana, na esfera penal se discute muito sobre o encarceramento de transexuais em penitenciárias femininas ou masculinas, conforme seja o sexo com o qual o trans se identifique, e não o seu sexo biológico.

Cumpre mencionar a decisão do HC 152.491-SP, no qual o Min. Luís Roberto Barroso reconheceu o direito da presa trans ser transferida à penitenciária feminina. Como esta decisão não alcança todos os casos com o mesmo teor (não tem efeito erga omnes nem ultra partes), também está pendente de julgamento na Corte a ADPF 527, sobre o mesmo tema, mas a primeira decisão já pode indicar uma tendência.

No âmbito cível é aplausível a evolução da alteração do registro civil, para fazer constar prenome e gênero com os quais os trans se identifiquem, cabendo lembrar que nem sempre as alterações foram bem vistas pela Suprema Corte brasileira: em 1981, quando teve de analisar o tema, a Corte entendeu que deveria prevalecer o determinismo biológico, razão pela qual o reconhecimento ou a autodeterminação com o gênero oposto não seriam motivos suficientes para embasar a alteração do registro;

Após a Constituição Federal de 1988, contudo, o Judiciário teve mais uma possibilidade de tratar do tema, oportunidade na qual se firmou a jurisprudência para admitir a alteração do registro civil dos transgêneros que tivessem sido submetidos ao procedimento cirúrgico de alteração de sexo, enquanto os que não tivessem feito a cirurgia – por qualquer motivo que fosse – não poderiam fazer a alteração civil.

A negativa de alteração do registro civil somente dos trans que não tivessem sido submetidos ao procedimento cirúrgico configurava uma afronta direta ao direito à igualdade e à dignidade da pessoa humana, uma vez que condicionava o correto tratamento de indivíduos trans, na sociedade civil, à realização de um procedimento cirúrgico extremamente invasivo e caro, pelo qual diversos trans não tinham condições psicológicas ou financeiras para, ou apenas não queriam se submeter.

A violação do direito ficou evidente, razão pela qual a Procuradoria Geral da República, em 2009, ajuizou a ADI 4.275, a fim de reconhecer a todos os transgêneros o direito de adequação de seu prenome e gênero no registro civil. Nove anos depois, em 2018, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela procedência do pedido por unanimidade, para garantir a adequação do registro civil de todos os transgêneros, independentemente de realização da cirurgia.

Documentário da Netflix aborda a transfobia e a invisibilização dos trangêneros

A Suprema Corte entendeu, ainda, que não há necessidade de mover ações judiciais para a adequação do registro civil, mas, ao revés, basta que se faça um pedido administrativo no Cartório de Registro Civil, que deverá proceder a correta atualização do registro do(a) trans, garantindo-lhe sua correta identificação.

É inquestionável, portanto, a lenta e gradativa evolução do direito, em rumo a reconhecer e assegurar direitos à comunidade LGBTQIA+ e, especificamente, os direitos dos trans, mas é, paralelamente, inquestionável a discriminação social sofrida pelos transgêneros, tanto pela comunidade hétero, quanto pela comunidade gay. 

Os transgêneros precisam de visibilidade e merecem o respeito aos seus direitos e garantias fundamentais, o que não é, de nenhuma forma, garantido no nosso país, que lidera o ranking de assassinato de transexuais e apresenta há dois anos consecutivos o aumento de número de homicídios de transexuais, mesmo durante uma pandemia.

(The Death and Life of Marsha P. Johnson, GRE/EUA, 2017, 105 min.)
Documentário | Direção: David France | Roteiro: David France, Mark Blane

Ver o documentário na Netflix

Direito em Cenas

Daniela Strieder

Advogada e ioguim, Daniela está sempre com a cabeça nas nuvens, criando e inventando histórias, mas não deixa de ter os pés na terra. Fã de cinema desde pequenina, tem um fraco por trilhas sonoras.
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