São 49 edições de Festival de Brasília. Como tudo que dura tanto tempo, muitas coisas aconteceram e mudaram durante esse tempo. Nos últimos anos, o festival mais político e conhecido pelo público extremamente crítico andava apagadinho. Depois de tentativas de mudança, com aumento do número de filmes, separação entre filmes de ficção e documentários, entre outras coisas, nada parecia conseguir devolver o brilho e o engajamento ao festival que tem como palco principal o Cine Brasília, último cinema de rua da cidade.
Mas a coisa mudou no 49° ano do evento. Pela primeira vez o festival apostou em uma curadoria ao invés da antiga comissão de seleção. Encabeçada pelo crítico, cineasta e ex-assessor da Ancine Eduardo Valente, dois grupos de curadores, com nomes de peso, foram montadas, um para os longas, outr para os curtas-metragens. Os filmes inscritos eram assistidos e debatidos, até que se chegasse a uma seleção final.
Além disso, Valente fez questão de movimentar ainda mais o festival. Além dos filmes selecionados para as mostra competitivas, aqueles que também mereciam ser exibidos ganharam mostras paralelas. De temáticas variadas, estas mostras falavam de representatividade, inclusão e política. Exibições especiais ainda completaram a programação, com filme sobre o grande homenageado da edição deste ano, Jean-Claude Bernardet, e com o novo trabalho de Júlio Bressane, Beduíno.
Debates sobre os filmes exibidos, oficinas e palestras maravilhosas ocuparam ainda as salas do Kubitschek Plaza Hotel, sede oficial do Festival de Brasília. Era uma programação que começava às 10h da manhã e só terminava depois da meia-noite. Nada demais para maratonistas de mostras, mas um universo novo para Brasília, no auge de sua seca, para aumentar ainda mais o cansaço.
Os filmes
A seleção deste ano, que incluiu mais 3 filmes na mostra competitiva e criou sessões duplas no final de semana, foi claramente mais elaborada. O casamento dos curtas e longas-metragens sempre muito bem pensado engrandeceu as sessões.
A comunicação entre os filmes pode ser percebida logo na noite de abertura, com Improvável Encontro, de Lauro Escorel, abrindo passagem para Cinema Novo, documentário de Eryk Rocha premiado com o L’Oeil d’or este ano em Cannes. E foi assim por quase todas as noites.
Obviamente, houve filmes selecionados sem muita explicação, notoriamente inferiores aos que participavam da mostra com eles, e houve uma ausência difícil de não ser sentida. No ano em que um curta brasileiro ganha uma menção honrosa em Cannes é inexplicável ele não estar em todas as seleções, mas nessa, mais ainda. Curtas são vistos em festivais e a ausência de A Moça que Dançou com o Diabo em Brasília mata um pouco o filme. Mas as coisas são assim, ainda mais quando são várias pessoas escolhendo.
Algo que chamou muita atenção nesta edição foi a presença de produções femininas. Seja no protagonismo diante das câmeras ou na condução do set, a mulher esteve muito bem representada no festival. O destaque absoluto vai para o curta-metragem Estado Itinerante, da mineira Ana Carolina Soares, protagonizado por Ribas. Numa mistura de referências muito diversas e com um conhecimento muito grande de narrativa e mise-en-scène, a jovem diretora demonstrou que tem um grande e promissor caminho pela frente. O mesmo pode ser dito de Ribas, ex-jogadora de vôlei que se apaixonou pelo ofício de atriz e executou uma das cenas mais marcantes do festival.
Dentre os longas, um outro filme abalou as estruturas de quem estava na platéia. Martírio, novo filme de Vincent Carelli, realizado com a colaboração de Ernesto de Carvalho e Tita, conta a história de luta e sobrevivência dos Guarani-Kaiowá, grupo indígena que resiste à invasão de suas terras há mais de 100 anos. Impossível assistir ao filme, que tem longos 160 minutos de duração, e não sair completamente mexido do cinema.
Apesar de serem os filmes mais marcantes e perturbadores, não foram esses os títulos escolhidos pelo júri oficial, embora ambos tenham ganhado menções honrosas. O belo curta Quando os Dias Eram Eternos, animação de Marcus Vinicius Vasconcelos, e o longa A Cidade Onde Envelheço, de Marília Rocha, foram os ganhadores. A melancolia do primeiro se contrapõe à leveza do segundo, mas ambos são também merecedores dos prêmios que levaram para casa.
Polêmicas
As polêmicas também estiveram presentes no festival. Seja na presença de um crítico convidado – que acabou de ser envolver em uma polêmica por pré-julgar um filme, abrir clara campanha contra ele e ainda se achar isento para participar de uma comissão de seleção onde o tal filme estava presente – seja durante as sessões.
O engajamento dos realizadores, que subiram ao palco com camisetas com dizeres de protesto e criaram uma campanha interna onde os filmes eram precedidos por uma cartela com os dizerem “cinema conta o golpe”, agradou a maioria, mas desagradou alguns dos presentes no cinema, descrito como uma bolha pelo curador Eduardo Valente. E como era bom estar dentro da bolha e ouvir o coro de Fora Temer e Diretas Já que antecedia cada sessão.
Voltando à tradição brasiliense, houve aplausos calorosos e vaias, mas a polêmica mesmo veio com o teor de dois dos filmes selecionados.
O longa do Amazonas Antes o Tempo Não Acabava indignou antropólogos presentes na sessão. A indignação chegou ao debate no dia seguinte, quando uma carta de uma antropóloga foi lida ao diretor. Entre ataques e defesas, uma indígena, a radialista Daiara Tukano, levantou-se e falou que nenhum dos dois lados podiam falar por ela. “Nós somos seres pensantes e temos a capacidade de dialogar com os mais velhos, os mais jovens. Nós também estamos no século 21 e mostramos todos os dias, inclusive dentro do movimento indígena esta capacidade de buscar diálogo, buscando que nossas sociedades possam dialogar e conviver melhor, deixando para trás o histórico de violência que marca nossas histórias”, afirmou.
Outro filme que causou polêmica foi o último a ser exibido na mostra competitiva, Deserto de Guilherme Weber. Ao evocar Thomas Hobbes e trazer a vilania do homem para uma nova sociedade, Weber viu sua crítica chegar como piada – de mau gosto – a vários espectadores.
Ambos os casos comprovam aquela máxima de que o filme deixa de ser do diretor assim que é assistido. Por mais que a intenção tenha sido uma, o que chega do outro lado da tela pode ser algo completamente diferente.
Espera
E foi assim, com uma seleção equilibrada, uma programação para lá de movimentada, muita atenção à questão da representatividade e a política fervilhando dentro da sala que o festival se viu voltando às suas grandes edições do passado. Obviamente, muita coisa mudou, foi aprimorada e outras ainda precisam ser transformadas, melhoradas (as cadeiras, por favor), mas o peso e a importância do mais antigo festival de cinema do Brasil estão de volta.
E como é bom fazer parte disso, ver de perto essa transformação, esse resgate de um festival que cresceu comigo. Que as mudanças continuem e que muitos outros festivais como esse venham por aí. Vida longa ao Festival de Brasília!
Estou exausta, morta de cansada, mas já quero que a 50ª edição chegue logo.