Crítica | Streaming e VoDDestaque

Agradecimento e Desculpas

Surreal como nós

( Tack och förlåt, SUE, 2023)
Nota  
  • Gênero: Drama, Comédia
  • Direção: Lisa Aschan
  • Roteiro: Marie Østerbye
  • Elenco: Sanna Sundqvist, Charlotta Björck, Ia Langhammer, Amaël Blomgren Alcaide, Peshang Rad, Juan Rodríguez, Ville Virtanen
  • Duração: 88 minutos

Uma obra absolutamente feminina, não teria como definir Agradecimento e Desculpas, atual sucesso da Netflix, sob outra alcunha. Dirigido, escrito, produzido, estrelado e abordando o universo de mulheres em meio a inúmeras perdas, ressentimentos e mágoas com as quais precisam lidar, o drama cômico (ou a comédia dramática) sueco é daquelas opções do streaming que, de tão inusitadas, valem por si só a nossa atenção. Quando adentramos as crises e consequentes motivos pelo qual todos os turbilhões são acionados pelo roteiro, a identificação vai se fazendo universal, independente de gênero. Ainda que o olhar sobre as tais pequenas tragédias familiares tem uma abordagem absolutamente ligada ao feminino, mas aos poucos muito mais do que empatia vai nos fazendo se colocar no lugar de cada uma de suas personagens. 

A diretora Lisa Aschan consegue olhar para cada filigrana tratada em cena e dosar bem as estranhezas originárias de suas situações. Há detalhes que vão nos conectando ao todo trabalhado ali, como quando durante uma desavença, uma das personagens se encontra encostada a uma porta que constantemente se abre para outro tipos saírem, e esse desconforto vai sendo entrecortado por micro constrangimentos, gerando um painel fora do comum. Isso poderia se aplicar a todo o desenvolvimento de Agradecimento e Desculpas, que não segue o padrão das tradicionais fitas sobre desajuste e posterior reajuste familiar. Isso porque a própria origem da produção molda esse humor desconectado do cinema, mas absolutamente crível ao que está sendo contado, de uma maneira tão sui generis quanto estranhamente natural. 

Estamos diante de duas irmãs, Sara e Linda, que estão afastadas há muitos anos. Sara acaba de encontrar o corpo do marido sem vida na cama, após o anúncio dele a respeito de que estaria abandonando a esposa aos 8 meses de gravidez. Linda está na enésima tentativa de reatar um namoro com um homem do qual está há muito desconectada, que também poderia resumir sua relação consigo mesma. Ambas se reencontram nessas esdrúxulas circunstâncias, e Agradecimento e Desculpas não ameniza a barra do público em relação ao que pode ser oferecido de uma vez; é tudo ao mesmo tempo agora. E as coisas são atropeladas num tempo da própria vida, ou seja, nada está em cena como uma bizarrice calculada, e sim entendendo que os arranjos das coisas muitas vezes não nos entregam qualquer nexo mesmo. 

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A roteirista Marie Østerbye é bastante experiente, e entrega um microcosmos muito fechado em poucos personagens (não passam de sete importantes) para conseguir dar conta de tantas chacoalhadas internas eles encaram. Protagonizado pelas duas irmãs, o filme ainda radiografa com dedicação mais três tipos, cuja dissecação ajuda também a motivar e/ou justificar as protagonistas. São duas mulheres que deixaram o rancor sem nome de uma e o descaso inocente da outra criar um abismo entre elas, que já não faz mais sentido há algum tempo, o espectador percebe. É desse vão gigantesco que a trama de Agradecimento e Desculpas costura tanto as relações entre elas, quanto todas as outras, um grupo de pessoas que encontraram no conformismo uma maneira de viver. 

Todo o elenco está comprometido com suas verdades particulares, e é tudo tão inusitado (e de vez em quando à beira do inacreditável) justamente porque toda a entrega em cena é construída com muita crença no que se está dizendo e vivendo. Acreditamos em cada um ali, porque todos são universos em rota de colisão, em momento-limite de compreender o lugar que quer ocupar não apenas no mundo, mas na vida dos outros. Agradecimento e Desculpas não tenta nos convencer sobre tais elementos, porque eles estão dispostos a nos convencer de prontidão à apresentação; é um grupo muito verossímil de movimentos que mostra como o limite entre a tragédia e o grotesco é uma linha tênue demais. 

Ao fim da jornada, foi feliz ter conhecido cada um ali, por mais vampirizantes que tenham sido uns com os outros, em algum momento. E ficam impressos na produção o sem número de cenas impagáveis, como todos os momentos entre Linda e Jasse, um traste que ela chama de namorado; não percam o momento da ligação telefônica dele, à beira da escada. Toda a estranheza que acaba por cercar Agradecimento e Desculpas não passa de um dado de sensatez tão arraigada que não nos resta mais nada a não ser constatar a identificação com personagens tão cheios de ter o que dizer. 

Um grande momento

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Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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