Críticas

Murina

Adolescer no oceano

(Murina, CRO, BRA, EUA, SLO, 2021)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Antoneta Alamat Kusijanovic
  • Roteiro: Antoneta Alamat Kusijanovic, Frank Graziano
  • Elenco: Gracija Filipovic, Danica Curcic, Leon Lucev, Cliff Curtis, Jonas Smulders
  • Duração: 93 minutos

“É com uma alegria tão profunda. É uma tal aleluia. Aleluia, grito eu, aleluia que se funde com o mais escuro uivo humano da dor de separação mas é grito de felicidade diabólica. Porque ninguém me prende mais”

Com os dias com um só clímax, vivendo à beira, esperando o encontro com o mar, Julija (Gracija Filipovic) atravessa a sempre turbulenta adolescência ainda que numa idílica paisagem na costa croata mas com ondas de agitação permanentes por conta do insuportável pai, Ante (Leon Lucev). Elipticamente, Murina abre e se fecha no oceano, onde Julija e Ante praticam a pesca de murinas, algo entre uma moreia ou enguia que vive entre as pedras nos cantos mais escuros e gelados do mar Adriático.

O peixe fugidio, rebelde é uma metáfora óbvia para a própria menina que vê na chegada de Javi (Cliff Curtis, charmosíssimo) uma chance dourada. Seguindo um plot já bastante explorado até, o que se sucede em Murina são dias e noites de sedução, alguma violência e bastante mágoas do passado, afinal, mesmo que amigo de Ante, Javi namorou a mãe de Julija, Nela (Danila Curcic) – e a menina usa essa informação inclusive como pólvora que faltava para desencadear a revolta e a necessidade de fugir daquele lugar.

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Produzido por Martin Scorsese e Rodrigo Teixeira (RT Features), o filme de Antoneta Alamat Kusijanovic flerta fortemente com aspectos técnicos e o sentimento de inadequação de Jacques Mayol em Imensidão Azul – clássico de Luc Besson. A fotografia deslumbrante de Hélène Louvart (de A Vida Invisível e Lazzaro Felice) dá conta de traduzir o paraíso que é aquele lugar em terra firme ou nas imagens subaquáticas.

Curioso é que Antoneta desenvolveu a história de seu primeiro longa ficcional com as mesmas personagens, mas com uma trama distinta da de seu curta realizado em 2017 e selecionado para a Mostra Generation da Berlinale, Into The Blue. Nele, Julija – também vivida por Filipovic -, 13 anos, ia passar as férias com a mãe numa ilha na Croácia onde ela cresceu e a tentativa era de se reaproximar da amiga de infância e tentar superar os traumas atuais, um pai violento, enquanto as meninas da idade dela estão mais preocupadas com os meninos e primeiros beijos.

Para Murina, juntou-se a Antoneta o roteirista Frank Graziano e o que se resulta dessa colaboração é uma história sobre amadurecimento forçoso em meio a uma relação paternal violenta e abusiva mas não só: fica subentendido que o pai da menina também é um ogro com a mãe e Julija é hipersexualizada por ele e por todos os personagens masculinos que a circundam, como já referenciado, mas inclusive por aquele que supostamente veio ao seu resgate, Javi. Ele dá indícios de que a considera rebelde, lasciva e inclusive usa a palavra “perigosa” – para se referir a menina em uma cena onde ela inocentemente brinca de interagir com outros adolescentes, beber e beijar um menino.

O porém é como se dá a progressão da personagem de Julija e de que forma ela é caracterizada. Se sempre vestindo maiô ou em trajes de mergulho, a menina é olhada com desejo por homens de todas as idades – mesmo o vizinho argumenta que ela está “nua”, sendo que acabou de sair da água, voltando da pesca. E o próprio pai tem algo como uma admiração investida com repulsa pela menina, o que implica numa fetichização daquele corpo que não tem muito como se resguardar ou proteger de ser enxergado dessa forma enviesada.

Longe de ser uma dinâmica Ariel e Tritão, Ante representa não o masculino super protetor e patriarcal (já, uma faceta negativa), mas sim um vilão, que alimenta uma espécie de animosidade inexplicável por Julija que se traduz bem na cena em que se torna seu carcereiro. Ainda que traga, já no terceiro ato, uma dicotomia interessante entre vida e morte nesse mesmo corpo jovem e feminino, que busca as luzes para escapar através da murina, o filme aparentemente faz o reforço da mensagem negativa. Que é: se querer ser livre é ser libertina no contexto apresentado pelo pai em Murina, pra ela só resultará em rompimento e não em compreensão?

Um grande momento
Pesca submarina de homem

[45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo]

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Lorenna Montenegro

Lorenna Montenegro é crítica de cinema, roteirista, jornalista cultural e produtora de conteúdo. É uma Elvira, o Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema e membro da Associação de Críticos de Cinema do Pará (ACCPA). Cursou Produção Audiovisual e ministra oficinas e cursos sobre crítica, história e estética do cinema.
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