Aniquilação

(Annihilation, GBR/EUA, 2018)
Ficção científica
Direção: Alex Garland
Elenco: Natalie Portman, Benedict Wong, Sonoya Mizuno, David Gyasi, Oscar Isaac, John Schwab, Jennifer Jason Leigh, Gina Rodriguez, Tuva Novotny, Tessa Thompson, Sammy Hayman, Josh Danford, Kristen McGarrity
Roteiro: Jeff VanderMeer (romance), Alex Garland
Duração: 115 min.
Nota: 9

Aniquilação

A autodestruição está programada em cada uma das nossas células?

Para responder a perguntas tão capciosas e profundas como essa, eis um dos autores de sci-fi mais requisitados de Hollywood: Alex Garland. Roteirista e romancista de mão cheia, que debutou na direção de cinema com Ex_Machina: Instinto Artificial (não sem antes ter escrito roteiros ótimos como o de Extermínio e Não Me Abandone Jamais), para seis anos depois se estabelecer como um dos nomes mais instigantes da indústria do audiovisual, estreando esse ano como criador de séries com Devs – uma antologia sobre inteligência artificial para o Hulu.

Mas antes de migrar para o serviço de streaming chegado em uma distopia – cujo maior sucesso é a adaptação de Handmaid’s Tale – Garland escreve e dirige Aniquilação, com os astros Natalie Portman (Cisne Negro) e Oscar Isaac (seu ator frequente) embarcando numa trip de ácido ou melhor, numa dolorosa história de amor, de perda e de reconciliação transmutada em uma alegoria eco-cósmica.

A tatuagem do infinito liga Lena (Portman) a Kane (Oscar) para além da morte. Ela, uma bióloga, não aceita o luto e segue investigando o desaparecimento do marido militar, enviado numa missão ultra secreta do Comando Sul. Dois anos depois ele retorna mas claramente não é mais o mesmo. Traumatizada e cheia de culpas, ela é levada até a Dra. Ventress (Jennifer Jason Leigh, de Os Oito Odiados), a cética psicóloga do projeto, que explica o que houve com o marido dela ao mesmo tempo em que explica o que é a Área X: um pedaço de uma reserva florestal que foi tomado por uma espécie de “brilho translúcido” e Kane foi a única pessoa a regressar de lá.

Se apoiando nas reminiscências da vida doméstica com Kane, querendo buscar uma cura para ele (que está hospitalizado na Área X) além de respostas para apaziguar sua alma – afinal, ela é cientista, do tipo que inclusive nas horas vagas está lendo a biografia de Henrietta Lacks –, ela parte numa missão suicida juntamente com Ventress, que não tem parentes ou nada para o que voltar, a física Josie (Tessa Thompson, de Creed: Nascido para Lutar), a paramédica Anya (Gina Rodriguez, de Horizonte Profundo: Desastre no Golfo) e Cass (Tuva Novotny, de Comer, Rezar, Amar). Uma equipe inteiramente feminina já traz uma conotação nova a um filme do gênero, homenagem a Ripley e Sarah Connor, mas também uma forma de mostrar como as mentes mais sensitivas das mulheres respondem de maneira mais eficaz a compreensão do fenômeno senciente (que percebe pelos sentidos/que recebe impressões) que as circunda.

Como se estivessem realmente em outra dimensão, elas tentam se ancorar nessa realidade. Lena recorre aos flashbacks, lembranças da vida com Kane e de deslizes cometidos – sendo a cena onde ela está transando com o colega da universidade o único nu do filme ou sexualização, algo a ser comemorado –, enquanto as outras companheiras não têm tanta sorte. Ainda são perseguidas por animais que sofreram mutações, deturpações e até duplicações, tornando a missão de chegar até o farol onde o fenômeno surgiu uma escalada mais e mais árdua. Lena vai compreendendo, conforme vai penetrando nos mistérios daquele brilho, coletando amostras das paredes, dos seres e da fauna/flora, que o brilho não anula, não é como se o que englobasse virasse uma zona morta mas sim que ele age como um prisma que refrata e que está resequenciando toda a biodiversidade.

Além das escolhas da direção por uma decupagem que dá o tom de delírio para a expedição (algo entre O Enigma do Outro Mundo e Apocalypse Now), a fotografia imprime uma sensação de sonho com as tonalidades furta-cor que vão infectando aquela reserva, como um fungo extraterrestre mágico (maligno ou benigno?). Os ecos vão aumentando em profusão, no grito desesperado de Anya reverberando Cass dentro do Mangusto ou quando elas atravessam o pântano até o farol… O desenho de som vai amplificando essa sensação de clausura acompanhada de devaneios. No ápice da curva dramática, Lena observa novas deturpações e vem até ela a conclusão de que aquele ser não deseja fragmentar mentes e corpos para aniquilar a raça humana mas sim que ao provocar (novas) duplicações, ele está imitando, espelhando o ser humano sem a aspiração de conquistar ou dominar, apenas ser. Estar. Experienciar.

Aniquilação parte então de uma esfera micro, do resgate da pessoa amada para tratar do macro – o Universo, as dimensões, o passado e o presente que se fundem e como o futuro está em preservar a vida – como a pele se mexe, junto à impressão digital, a mente que se esvanece e a percepção que se amplia ao assistir a esse produto fílmico. Alterar a vida, aprimorar e se fundir – como Josie, as plantas que ganharam contornos do corpo humano pela mutação do DNA – ao sentir algo maior percorrendo aquela matéria primordial que se molda é a lição mais metafórica e flagrante. O toque que resequencia e dá uma nova oportunidade. A vida e o amor que renasce, liquefeito.

Apesar de não constar nos créditos nem um tipo de inspiração lovecraftiana, não tem como dissociar o enredo de Aniquilação da narrativa do conto “A Cor Que Caiu do Espaço”. Tudo está lá, desde o meteoro que cai trazendo um ser alienígena cromático que começa a alterar o ambiente – uma fazenda –, sendo que esse conto de H.P. Lovecraft ganhou uma adaptação literal com Nicolas Cage no elenco. Não vi e pode ser que seja impressionante, mas a artesania do trabalho de Garland, que resulta em uma das ficções científicas mais refinadas do cinema recente, raramente será igualada.

Um Grande Momento:
Reencontro, pele a pele.

Links

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