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Atiraram no Pianista

Fascínio e horror

(Dispararon al pianista, ESP, FRA, NED, POR, PER, 2023)
Nota  
  • Gênero: Animação
  • Direção: Fernando Trueba, Javier Mariscal
  • Roteiro: Fernando Trueba
  • Elenco: Jeff Goldblum, Tony Ramos
  • Duração: 101 minutos

Saímos de Atiraram no Pianista, produção que abre o Festival do Rio 2023, com uma dúvida pertinente: como uma história tão intrigante sobre como nosso universo da MPB foi massacrado diretamente pela ditadura não foi até hoje contada pelo nosso cinema? O cineasta espanhol Fernando Trueba corrige esse erro com a História, e o transforma em uma animação fascinante para essa narrativa que acompanhamos. A partir daí, enfim conseguimos ter maior acesso a mais um escândalo absurdo dos golpistas assassinos fardados que dominaram a América Latina entre os anos 60 e 80. Essa é a grande ambiguidade da produção, ao fazer o espectador ter o discernimento de reconhecer o encanto de sua realização em meio ao horror de seus eventos. 

Trueba venceu um questionável Oscar de filme internacional há 30 anos atrás com o simpático Sedução, e já foi indicado antes em animação por Chico & Rita, mas o olhar brasileiro para Atiraram no Pianista acaba por elevar seu novo filme. Não teremos o distanciamento adequado para observar uma obra que nos exalta tanto, que coloca nossas melhores qualidades em tamanha evidência e de maneira tão suntuosa, e minimizar os feitos do cineasta e sua equipe. Com técnicas parecidas com o que conseguiu em sua animação anterior, a equipe da produção consegue a tarefa milagrosa de realçar, através da rotoscopia, um tempo que se dividia entre o ufanismo com nossa música e a violência absurda dos golpes militares que devastaram o Brasil e todos os países latinos. 

É profundamente agridoce que uma celebração da arte que o Brasil mais exportou pelo mundo seja também palco para as lembranças mais amargas dos últimos 60 anos no país, e que se viu às voltas de ser retomado a qualquer momento pelos governos anteriores ao atual no país. O apreço da extrema direita pela volta das chacinas de todos que buscaram algum tipo de liberdade e a democracia durante duas décadas é espelhado em mais uma produção que, de maneiras diretas e indiretas, tenta dialogar sobre o absurdo de se viver sob um regime ditatorial. Com imagens esfuziantes e coloridíssimas a tentar espaço entre cinzas profundas de sombras que teimam em retornar, Atiraram no Pianista é um retrato dilacerante sobre a dicotomia que era ser brasileiro na ditadura, vista pelos carinhosos olhos de um europeu. 

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Tenório Jr., que possivelmente foi o nosso pianista mais virtuoso a surgir com a chegada da bossa nova, cometeu o crime supremo de ser livre na Argentina ditatorial de 1976. Foi sequestrado e barbaramente assassinado nos porões militares enquanto se apresentava na capital argentina, ao lado de seu grande amigo Vinicius de Moraes. Se os requintes de crueldade relatados aqui ainda soam atordoantes hoje, Atiraram no Pianista tenta também resgatar esse músico muito menos reconhecido do que deveria, e com isso exaltar sua obra e seu talento. Essa é a maneira encontrada para traçar uma linha que não perca de vista seus dois tomos: estamos diante de um homem genial em sua simplicidade, mas que também foi uma das muitas vítimas de um período sangrento no continente. Trueba sabe que precisa equilibrar essas duas vertentes, e o filme segue atendendo a esses dois sentimentos contraditórios. 

Seu maior problema, no entanto, parece ser uma escolha de Trueba pelo excesso. Se nem uma biografia tem por obrigação reconstituir cada passagem da vida de alguém, uma investigação cinematográfica muito menos teria. O pecado do autor, que tinha acabado de falar sobre ditadura em A Ausência que Seremos, é não perceber seu amor pelo que está contando e deixar o ritmo do seu filme ser levado pelo vento, que nem sempre obedece ao dinamismo, dando preferência ao didatismo muitas vezes. Ainda que seja especificamente um momento necessário para ser didático, Atiraram no Pianista se empolga com facilidade pelo tanto de material rico que tem para explorar, e não se dá conta de que deveria sim podar personagens e tornar menos reiterativo alguns blocos de eventos. 

Ainda que seja verdadeiramente de profunda força estética todos os movimentos que a animação faz para traduzir a efervescência de um ritmo hipnotizante, e de um país que inebria a quem aqui pousa, Atiraram no Pianista poderia ser melhor domado. Ainda que impressione as recriações gestuais de Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque, Toquinho, Ferreira Gullar e tantos outros, essas aparições servem mais para encantar do que para acrescentar algo à narrativa, além de elogios à Tenório. Mais construtivo me parece ser a comparação comum da bossa nova à ‘nouvelle vague’ francesa, dois movimentos que revolucionaram suas artes. Junto à animação que trafega ao mesmo tempo entre o sonho e o pesadelo, entre o onírico e a realidade criminosa, essa parece ser uma maneira enfim celebratória a se colocar um homenageado e seu talento. 

Um grande momento
Milton Nascimento

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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