Berlinale 2020: Erros, acertos e um inferno astral

Até pouco tempo atrás, a Berlinale era um período de tempo em que necessidades como dormir, organizar os fichários no computador, cozinhar uma comidinha rápida para forrar o estômago ou mesmo ir ao supermercado se tornavam irrelevantes; durante 10 dias, insignificantes e, na prática, inexistentes.

A gente espera o ano todo para mergulhar num oceano de aventuras cinematográficas, conversar com obcecados pela Sétima Arte nos mais diferentes idiomas e nos momentos mais inusitados de dias que duram sentidas 48 horas. A energia acumulada, se estende pelo resto do ano. Entretanto, o ano de 2020 culminou com as mudanças que já se vinham alinhavando e delineando no horizonte político em tantas partes do mundo, somadas às mudanças no comando do festival e o número avalanche de desdobramento disso: em mostras, abrangência, foco temático e troca de patrocinadores.

O momento em que vivemos tem uma dinâmica diária tão convulsiva que, provavelmente, o aniversário redondo de 70 anos da Berlinale 2020 será uma pequena nota nos anais da estatística do festival mais político do mundo. O próprio festival precisa se redefinir e fazer faxina na sua história. O novo diretor artístico terá que provar que entende a essência desse festival. Afinal, Locarno não é Berlim.

There Is No Evil, de Mohammad Rasoulof | Foto: Cosmopol Film

O ex-diretor Dieter Kosslick (2001-2019), certa vez, disse: “Cinema nos mostra o que acontece no mundo” e se há um aspecto que nem mesmo mudanças avassaladores na Alemanha e no mundo com um todo conseguiram apagar, é a nota política da Berlinale, que é transparente na escolha e premiação dos filmes. Isso foi ratificado em 2020. There is no Evil, o filme do diretor iraniano Mohammad Rasoulof, levou o Urso de Ouro. Durante a coletiva de imprensa dos premiados, ele falou à imprensa pelo telefone celular de um dos produtores. Em algum momento, a ligação caiu.

Já é a terceira vez que a Berlinale, muito mais por motivo político, premia o Irã. Em 2011, foi A Separação de Asghar Farhadi, o mesmo ano em que Jafar Panahi havia sido convidado para integrar o júri internacional presidido por Isabella Rossellini, mas se encontrava em prisão domiciliar e proibido de exercer a profissão de cineasta. Em 2015, o próprio Panahi teve seu filme Táxi na mostra competitiva e foi premiado com o Urso de Ouro.

Em 2020, There is no Evil dá continuidade a essa característica. Nesses três filmes, não “só” a própria obra estava sendo objeto de avaliação, mas uma mensagem de alerta para o mundo contra regimes opressores e anti-democráticos.

O anúncio do filme vencedor foi feito pelo presidente do júri internacional, o britânico Jeremy Irons, como se fosse o porta-voz da “grande novidade”, vestindo um guarda-roupa, provavelmente de algum de seus filmes, que incluía botas que iam até o joelho.

Só assim é possível mostrar (ratificar) para o mundo que cineastas arriscam a vida e diretores são mantidos em prisão domiciliar e são proibidos de fazer cinema na República Islâmica do Irã (e, como bem sabemos, também em outras repúblicas). Porém, um festival de cinema deveria ter como prioridade avaliar os filmes sob os critérios de uma obra cinematográfica. Na Berlinale, quase sempre, essa regra é suspensa.

First Cow, de Kelly Reichardt | Foto: Allyson Riggs/A24

Não que em 2020 os filmes não tenham sido motivo de regozijo para a retina. Foram, e muito!

Já no primeiro ano sob novo bastão artístico de Carlo Chatrian, a mostra competitiva recuperou seu DNA com uma diversidade instigante, para dizer ao mínimo. O que fica difícil de entender, é que os melhores filmes não foram premiados. First Cow, Berlin Alexanderplatz, por exemplo. No meu prognóstico que o filme levaria o Urso de Ouro, eu errei. O filme saiu do festival, de mãos vazias. Mea Culpa. Porém, a fila na tarde de domingo (1º), um dia depois da premiação, quando os berlinenses invadem os cinemas para ver a obra-prima Berlin Alexanderplatz, tinha o comprimento de 1,5 km, ia da frente do Berlinale Palast até o centro da Potsdamer Platz.

Da premiação, pode-se constatar 3 acertos:

A diretora americana Eliza Hittman, que já chegou em Berlim com um respaldo de uma premiação em Sundance, levou o Grande Prêmio do Júri pro filme que fala de uma jovem mulher da Pensilvânia que vai para Nova Iorque fazer um aborto.

Elio Germano, o “matador” da Mostra Competitiva, concorrendo com dois filmes, levou o Prêmio de Melhor Ator e terá a mala mais pesada de volta para a Itália com o Urso de Prata dentro dela. Nesse prognóstico, eu fui certeira.

There is no Evil é um filme que, em seus primeiros 45 minutos lembra muito o Taxi de Jafar Panahi. A opinião de jornalistas sobre o último filme a ser exibido na mostra competitiva (28), não poderia ser mais antagônica. Alguns o classificam de “superior” ou “O filme que entra para a minha lista dos cinco preferidos” ou aqueles como eu, não consegui, durante os 45 minutos que estive na sala, depois da premiação, encontrar algum gancho para continuar me interessando pela história, contada em 4 episódios.

Never Rarely Sometimes Always, de Eliza Hittman | Foto: Focus Features

Há cinéfilos e jornalistas de cinema que não saem do cinema de jeito nenhum, até mesmo quando o filme passa a causar desconforto físico. Foi assim comigo em Manchester à Beira Mar, dirigido por Kenneth Lonergan, que integrou o Júri internacional da Berlinale 2020. Na noite da premiação, ele brilhou pela ausência. Em mensagem por vídeo, transmitida no telão do Berlinale Palast, Lonergan alegou que “Tinha um compromisso inadiável em Nova Iorque” e estaria triste num assento de um avião, embarcando quando gravou a mensagem.

A Árvore do diretor português André Gil Mata ou mesmo o Happy End do diretor Michael Haneke. Desses diretores eu nunca mais assistirei filmes. Com todo o amor pela Sétima Arte, mas quando o filme começa a gerar um desconforto físico e até mesmo um sentimento de irritação culminando em raiva, a única alternativa, é sair. Aprendi a não subestimar o meu tempo. É um posicionamento radical? Sim.

Brasinale

Essa expressão não é minha. A ouvi pela primeira vez, ao entrevistar (exclusivo para o Cenas) a jornalista, repórter do Canal Brasil, Flavia Guerra.

Essa expressão é certeira sobre o momento brasileiro em diversas mostras.Tomando a Berlinale como um retrato sobre a atividade do setor visual no Brasil, o motivo é só de otimismo: 19 obras espalhadas pelas mostras e contagiando o público berlinense, que nutre igualmente carinho e fome pelo cinema brasileiro.

Meu Nome É Bagdá, de Caru Alves de Souza | Foto: Camila Cornelsen

Os meus 3 favoritos:

Meu nome é Bagdá da diretora Caru Alves de Souza, que sai de Berlim com o Grande Prêmio do Júri da mostra Generation 14Plus, levando a quantia de 7.500,00 euros, patrocinada pela Agência Federal para Educação Civil;
Narjes do diretor cearense radicado em Berlim, Karim Ainöuz, e
Vaga Carne da atriz, produtora e diretora mineira Grace Passô

O que faltou:

A premiação da linda obra da diretora portuguesa Catarina Vasconcelos que esteve presente com A Metamorfose dos Pássaros na recém-fundada mostra Encontros

Berlim não é Locarno

Em sua presença no tapete vermelho, o ex-diretor artístico do festival de Locarno se mostrou tímido e avesso a conversas. A Berlinale precisa de um cartão de visitas. A dobradinha Mariette Rissenbeek e Carlo Chatrian não é aquilo que em alemão se chama de “Sympathieträger”, ou seja, não tem talento para o popular. Na tarde de sábado, ao vê-lo no corredor do setor de imprensa, indaguei ao diretor artístico da Berlinale, se poderia fazer uma foto sua (e não uma selfie) e expliquei ser para a imprensa brasileira. Ele relutou e enquanto tirava o seu sobretudo para dar para a sua assistente, disse: “Mas já existem fotos minha”. Quando eu quis recuar, para não criar um mal estar, ele disse “vamos lá” e fez a foto com visível desgosto, foto essa, claro, que não foi publicada. Um diretor de festival precisa ser mais aberto à indagações espontâneas. Não apenas ser exímio conhecedor de filmes, nem mesmo somente ter um excelente olhar para selecioná-los. Berlim precisa muito mais do que “só” isso. Ainda serão necessárias, no mínimo, duas edições para que Carlo entregue o serviço e convença os berlinenses, ser “o cara”.

Mariette Rissenbeek e Carlo Chatrian | Foto: Berlinale

Inferno astral e o relógio biológico

Algo dentro de mim se rebelava na semana de início da Berlinale 2020. Esse calendário sempre existiu nos primeiros dias de fevereiro e lá pelo dia 19, acabava. Em 2020, ele começou no dia 20. Meu relógio interior ficou irritadíssimo com o deslocamento temporal, que compromete vários outros afazeres. O estresse dessa Berlinale, eu vejo como um somatório de vários fatores, além do calendário. Também a criação da mostra Encontros exigiu um planejamento meticuloso de horário para poder acompanhar a mostra competitiva e a competitiva “Light” como a nova mostra foi apelidada pelos jornalistas.

O fato da corrente da minha bicicleta ter saído do lugar exatamente no segundo dia do festival, quando eu corria para assistir ao filme seria só o início de um período de inferno astral. Sob um frio gélido e sem luvas que esqueci em casa, lá fui eu, no final da tarde de uma sexta-feira procurar ajuda para não ter que me deslocar para a loja de bicicletas, algo que me custaria, no mínimo, 90 minutos. A campainha da bicicleta decidiu soltar, no mesmo dia. Algumas horas depois, abrindo a porta do armário de roupas que, em 6 anos, nunca apresentou defeito, a porta despencou na parte de cima, onde existem grande número de parafusos, e veio cair na minha mão. Mas isso não é nada, comparado à morte do meu celular que, primeiramente não carregava, depois carregava mais não subia, ou seja, eu não tinha acesso aos dados. Pensei: depois da Berlinale, compro um celular novo. Assim terei tempo de configurá-lo sem pressa e sem estresse. É assim mesmo. Enquanto você faz planos, a vida cai de uma cadeira por morrer de rir.

O fim dessa semana de percalços, contratempos e um clima hostil em forma de frio gélido na cidade é a sensação de que a Berlinale chegou “atrasada”, se mostrou ainda muito crua em seus arredores em termos de ambiente, clima. Não há mais um lounge para se reunir com colegas e tomar champagne no final da noite (mesmo não tomando champagne, eu sempre degustava um delicioso suco de beterraba). Os patrocinadores de sucos saudáveis e produção de frutas sustentáveis ou fazedores de relógios ou mesmo a marca Nespresso saíram da lista de patrocinadores. Fora o lounge do fabricante de automóveis, AUDI, faltou nesta Berlinale lugar para confraternização com atuantes no setor.

A infraestrutura do centro de imprensa para os jornalistas continua sendo muito precária. Enquanto em Cannes tem cafezinho e chá além de uma varanda com vista para a Costa Azul, a Berlinale oferece uma sala dentro do centro de imprensa, localizado dentro do Hotel Hyatt. Jornalistas falando alto em todas as línguas babilônicas no celular enquanto outros tentam trabalhar é algo frequente demais, sem nenhum controle dos “responsáveis” para fazer do local, o mais agradável para facilitar os jornalistas a executar seus trabalhos. A única facility é água mineral e pontos de carregamento de celular.

Estranhamentos

Em conversa com vários colegas e ao indagar as impressões sobre a edição 2020, as repostas foram mornas. Nada de entusiasmo, grandes histórias. O aniversário de 70 anos da Berlinale também não teve um momento favorável: a epidemia do Coronavírus fez ausentes muitos colegas da China, que ficaram presos no país. O ataque terrorista na cidade de Hanau, dois dias antes do início do festival, também entristeceu os ânimos. A ascensão do partido fascista na Alemanha tem ocasionado terremotos políticos que sempre chegam em Berlim, sede do governo federal.

No Mercado de Cinema Europeu, onde profissionais do mercado, diretores de festivais e tantos outros se encontram, eu percebi numa cadeira um bilhete, no qual estava escrito:

“No Hughs, No Kisses, Nothing Personal”
(Sem abraço, sem beijos, nada pessoal).

Para arrematar o final de uma semana cheia de entrave e desafios, foi veiculado na noite de sexta-feira, que a maior feira de turismo do mundo e que iniciaria dia 4 em Berlim, foi cancelada por causa do Coronavírus.

Father, de Srdan Golubović | Foto: Maja Medic/Film House Baš Čelik

A cerimônia de entrega de prêmio de público da Mostra Panorama é quando a ficha cai de que a Berlinale acabou. O ingresso do domingo, que foi criado para os berlinenses invadirem e “ocuparem” os cinemas, tem na data o mês de março. Inusitado ter o último dia da Berlinale quando já iniciou março.

O filme de ficção que arrebatou o público da Panorama foi Father de Srdan Golubovic, da Sérvia. Um pai tenta de tudo para lutar contra o aparato gigante de um estado para reaver seus filhos, mesmo que o trajeto de 300 km tenha que ser feito a pé.

Welcome to Chechenya do americano David France documenta a homofobia em forma de crimes bárbaros aos membros da comunidade LGBT. Tudo a mando do ditador Vladimir Putin.

A edição 2021 será na janela temporária dos anos anteriores: entre 11 e 21 de Fevereiro. Assim, o relógio biológico, volta ao equilíbrio.

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