BERLIM – Ao contrário dos concorrentes Cannes e Veneza, o Festival de Cinema de Berlim tem um caráter essencialmente político e popular. A cidade inteira embala na euforia por ser o foco cinematográfico, a janela da Alemanha para o mundo. E o melhor de tudo: num período de aproximadamente dez dias, os berlinenses rabugentos não se atrevem a sair da toca.
Na época da cortina de ferro, o festival era o ápice dos eventos internacionais na cidade cercada pelo muro, um flair de internacionalidade, a alegria de, mesmo por poucos dias, sair da isolação política causada pela Guerra Fria.
As duríssimas disputas por um autógrafo de um Gregory Peck, uma Marlene Dietrich ou uma Claudia Cardinale estão eternizadas no livro “Berlinale” publicado em 2010, em comemoração aos 60 anos do festival. Cenas memoráveis de Sidney Poitier recebendo um Urso de Prata; Claudia Cardinale (uma rotineira do festival), o Urso berlinense de honra Ehrenbär; Romy Schneider em 1956; o inesquecível discurso bem-humorado do adorável diretor Billy Wilder em 1993, ao ser premiado pela sua contribuição ao cinema internacional. A presença de Charlon Helston e Jean-Luc Godard – esse último saiu premiado em 1961 – poucos meses antes da construção do muro de Berlim, no agosto seguinte. Nessa época, o festival acontecia durante o verão europeu.
George Clooney, o mais aguardado representante do sexo masculino, seja nas ruas da cidade ou na coletiva de imprensa, “The sexiest man alive”, não se salva de pedidos de casamento e ofertas grátis de todas as faixas etárias para mostrá-lo a cidade. Depois da virada do século, um dos momentos mais marcantes do festival foi a coletiva de imprensa dos Rolling Stones e da rainha do pop, Madonna, ambas em 2008, numa edição de forte foco musical.
Em seus 62 anos de história e influência político-cultural, o Festival de Berlim sempre se mostrou em sintonia com o espírito do tempo, o Zeitgeist. No final dos anos 60, por exemplo, a programação espelhava a rebeldia do movimento estudantil. Um das histórias mais conhecidas desse evento ímpar está descrita no livro “Berlinale, The Festival”, do jornalista britânico Peter Cowie, durante anos, observador atento das diversas facetas do festival.
Ulrich Gregor, ex-diretor da Mostra paralela Forum, foi figura-chave na ousadia em mostrar filmes controversos e subversivos na época da repressão política. Em 1976 ele decidiu exibir o polêmico O Império dos Sentidos, do diretor Nagisa Oshima. A consequência disso foi uma inesperada “visita” da Promotoria Federal no cinema para apreender aquela que constava como a única cópia. Além disso, Gregor foi indiciado por “propagação de material pornográfico”. A sessão do dia seguinte teve que ser adiada. Para a terceira sessão conseguiu-se, quase por acaso, uma cópia do produtor. É desnecessário uma foto para imaginar o que se deu em frente ao cinema nesse dia. A Berlinale também é isso: ver ou não um filme pode e vira, de fato, questão de vida ou morte, de ser ou não ser, toma proporções filosóficas.
Cinéfilos do planeta Terra encontram em Berlim um banquete intelectual envolvendo todos os sentidos, que torna necessidades básicas como comer, dormir, colocar a roupa na máquina de lavar, desaparecerem da consciência. Que se dane o aquecimento global. Que se dane o escândalo há semanas envolvendo do presidente germânico Christian Wulff. O que a gente quer mesmo é ver filmes, encontrar colegas, discutir calorosamente sobre o filme que acabou de ser visto.
A cerimônia de abertura
Não faltam deputados de todos os partidos, ministros, além da presença obrigatória e um tanto enfadonha do prefeito da cidade de Berlim, Klaus Wowereit, que tem a incumbência de abrir oficialmente o festival. O Ministro da Cultura, Bernd Neumann, incentivador financeiro de peso do festival, é sempre presença certa representando o governo alemão.
Dieter Kosslick, o diretor
Dieter Kosslick, há dez anos diretor, cabeça e coração do festival, goza de uma popularidade e um grau de empatia de todos os setores da opinião pública com os quais todo político sonha. Natural do sudeste da Alemanha, simpatisíssimo, atrapalhado, muito inconvencional para a função que ocupa, cativa da mesma forma os dinossauros da floresta Hollywood que vêm à Berlim e os produtores de filmes, que têm enorme prazer em exibir pela primeira vez suas obras na capital. Desde 2001 na chefia do Festival, Dieter Kosslick conseguiu o que nenhum chefe de marketing planejava: se tornou a marca Berlinale. O xale vermelho, as piadas nas coletivas e andanças agitadas ao longo do tapete vermelho complementam o “pacote Kosslick”.
Seu antecessor, Moritz de Hadeln, condenou o filme alemão ao total ostracismo, deixando-o regularmente fora da competição. Kosslick é responsável por uma verdadeira renaissancedo cinema alemão contemporâneo e, consequentemente, pela projeção de atores alemães no mercado cinematográfico internacional. Essa arrojada trajetória teve início durante os seus nove anos na chefia da Fundação Cinematográfica da região da Westfalia, a mais robusta patrocinadora e incentivadora de filmes na Alemanha, com um salgado orçamento para a realização de filmes e, nos últimos anos, forte foco em coproduções internacionais.
É também uma proeza de Kosslick a Berlinale se tornar um importantíssimo centro de negócios, alimentando a indústria. Na plataforma Talent Campus, jovens cineastas participam de simpósios, workshops e grupos de trabalho com os dinossauros da área. Na lista dos ilustres palestrantes dessa plataforma estão, entre tantos outros, Wim Wenders; Dennis Hopper; o compositor Hans Zimmer; o diretor de Central do Brasil, Walter Salles, já por duas vezes; José Padilha; Tilda Swinton e, neste ano, Keanu Reeves.
A infraestrutura
Ingressos com valores acessíveis (entre 19 e 38 reais) e um sistema de vendas antecipadas, também pela internet, permite a todos os setores da população fazerem parte do evento mais querido da cidade. Nenhuma chuva, neve e/ou temperatura polar impede fãs – com ou sem ingressos – de ficarem horas plantados na Praça Marlene Dietrich, onde está localizado o Berlinale Palast, cinema principal do festival.
O Festival de Cinema de Berlim é muito mais do que um evento cinematográfico. A responsabilidade com o meio ambiente faz parte do planejamento e da gerência como os filmes. Dieter Kosslick disse certa vez: não podemos mostrar filmes sobre a poluição do meio ambiente e continuar a imprimir toneladas de papéis, que depois serão jogados fora. Há dois anos o setor de imprensa extinguiu os mapas impressos. Eles são enviados por email e impressos em papel somente quando especialmente solicitado. Esse ano o Festival fez parceria com a Deutsche Bahn (DB), a compania ferroviária federal, possibilitando passagens mais baratas aos visitantes do festival que optarem pelo trem para chegar à capital.
Essas e outras medidas arredondam a concepção de um mega-evento que é a menina dos olhos dos Berlinenses e traz consigo a bandeira: cinema, para todos.