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Bobi Wine: O Presidente do Povo

Integridade a toda prova

(Bobi Wine: The People's President, RUN, UGA, EUA, 2023)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Moses Bwayo, Christopher Sharp
  • Duração: 111 minutos

Mais um ano onde a seara documental do Oscar é dominada por narrativas estrangeiras aos Estados Unidos não apenas na composição de sua produção, mas principalmente pelos temas em questão. Histórias políticas ou dramas intimistas, estão em choque cinco olhares que independem da sensibilidade estadunidense e sua forma de se relacionar com o mundo. Bobi Wine: O Presidente do Povo é da ala que enxerga uma luz de esperança no futuro, ao contrário de seus companheiros de disputa. Isso faz a diferença em uma corrida pesada em tempos pesados como os nossos. Ao invés de se cercar apenas da dor e da investigação explícita do horror, as imagens aqui estão à disposição de outro mecanismo, que o afasta da concorrência.

Os diretores Moses Bwayo e Christopher Sharp são muito cuidadosos com a intencionalidade do que mostram, muito provavelmente porque ao menos um deles vive aquela realidade há mais tempo do que “uma temporada como jornalista” (não é, Mystslav Chernov?). Não é como se a produção não soubesse da gravidade dos atos dispostos em cena. Em determinado momento, um telejornal declara que, em apenas 2 dias, cerca de 42 pessoas foram assassinadas pelas forças policiais. Não há disfarce para essas palavras ou imagens, mas há um contexto de modulação dessas informações imagéticas. Não existe um massacre sistêmico de investigação, que parece só servir ao sensacionalismo. Existe um paralelo entre o que vemos e o que sabemos, e o que Bob Wine: O Presidente do Povo proporciona com suas ideias. 

Além disso, o discurso da produção não é enviesado, não transmuta com a voz do realizador. Ou seja, o contato do espectador é diretamente com Bob Wine, sua esposa, seus companheiros de luta, e até com Yoweri Museveni, o líder político de Uganda por 35 anos. Não existe atravessamento de discurso, ele está direto na tela através de quem afeta ou é afetado pelos acontecimentos. Poderíamos chamar isso de lisura diante do que se mostra, mas chamaremos apenas de bom cinema mesmo. Porque não paternaliza o espectador, porque não tenta induzi-lo, porque não cria estratagemas de comiseração para engrupir quem assiste a obra. Acima de tudo, Bobi Wine: O Presidente do Povo não tenta pegar para si uma fala que só cabe aos seus personagens, e não aos seus realizadores. 

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Os diretores de um documentário, principalmente aqueles de situações tão pungentes e que tenham de muitas formas ligação com o que está sendo contado, teriam (ao meu ver) algumas responsabilidades a cumprir. O que fazem Bwayo e Sharp, aqui, é o mais próximo do ideal, tendo em vista o formato menos arriscado escolhido, sem experimentações. Bob Wine: O Presidente do Povo é uma plataforma de observação de material jornalístico, que embora tenha repercutido bastante no cenário diplomático, ainda funciona no que concerne a denúncia apresentada. Ainda assim, seu valor principal vem do distanciamento que os contadores da história estabeleceram com a mesma, ao manter suas imagens neutras de exposição. O julgamento é feito por quem o assiste, e a manipulação não passa pelo campo das ideias. 

Essa distância segura entre o que presenciamos e a forma como a informação é levada se assemelha também ao melhor material jornalístico possível, onde a criatividade cinematográfica tem pouca entrada. Mas talvez a intenção de Bobi Wine: O Presidente do Povo tenha sido ser íntegro mesmo, sem querer posicionar-se de maneira frontal ao que as imagens já fornecem. Mesmo as contradições que a sedução do poder apresentem na narrativa – e fora dela – são todas tratadas da maneira que imbuem Wine de camadas, trazem rigor mais ao personagem e ao seu discurso do que necessariamente a linguagem cinematográfica. Essa, segue impávida na sua busca por isenção do olhar, com esse espaço aberto para uma reflexão pertinente: cobramos sim, cobramos sempre, mas quem de nós pode garantir coerência quando assentados em outra esfera? O lugar onde o personagem se coloca é corajoso. 

O sopro de esperança, afinal, existe em cena. Essa centelha eterna de que algo, em algum momento, trará a normalidade de volta, habita apenas nos grandes homens. De astro da música pop mundial a um dos pensadores políticos mais respeitados em seu Estado, Bob Wine ultrapassou lugares que talvez ele não tenha desejado ou previsto em sua trajetória. Isso só eleva sua biografia pessoal, e coloca Bob Wine: O Presidente do Povo em lugar ainda mais especial, o de esbarrar com algo acidental elevado a uma potência incansável, para uma voz que irá além do seu tempo. 

Um grande momento

A coragem de Bob diante da incerteza da honestidade

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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