Godland, de Hlynur Pálmason
(Dinamarca/Islândia/França/Suécia, 2022)
Un Certain Regard
Domingo y la niebla, de Ariel Escalante Meza
(Costa Rica/Qatar, 2022)
Un Certain Regard
Burning Days, de Emin Alper
(Turquia/França/Alemanha/Grécia/Croácia/Holanda, 2022)
Un Certain Regard
The Stranger, de Thomas M. Wright
(Austrália, 2022)
Un Certain Regard
Plan 75, de Chie Hayakawa
(Japão/França/Filipinas, 2022)
Un Certain Regard
Entre os filmes da mostra Un Certain Regard deste ano, foi notável uma grande quantidade de filmes oriundos de origens bem distintas (de fato quase que literalmente espalhados por todos os continentes) que reforçavam, de distintas maneiras, a máxima hobbesiana que dá título a este texto. Em vários deles, o ambiente natural surge como um desafio e tanto a ser superado, mas ao fim e ao cabo a perdição de seus (anti)heróis se dá sempre pelo confronto com outros homens e não necessariamente pela intervenção da inclemente e, muitas vezes, cruelmente indiferente mãe natureza.
Dentre estes filmes, o mais radicalmente dedicado aos espaços naturais é o do cineasta islandês Hlynur Pálmason. Em Godland, um padre dinamarquês recebe a missão de liderar uma expedição rumo a uma área altamente inóspita da Islândia, onde deve ajudar a construir uma igreja. A primeira metade do filme se dedicará quase exclusivamente a acompanhar essa missão, realizada por alguns homens e cavalos, na busca de levar os materiais necessários até o local da construção. O que começa como uma exploração de uma paisagem imponente e belíssima (que dá um sentido eminentemente positivo à expressão do seu título, a tal “terra de Deus”) vai gradualmente se tornando um périplo às beiras da insanidade, na medida em que as condições naturais vão fazendo com que seja mais e mais difícil o trajeto. Realizando seu filme num opressivo aspecto 4:3, com a tela quadrada (uma opção interessante frente à grandiosidade da paisagem), nesta primeira metade Pálmason investe cada vez mais radicalmente numa quase abstração, buscando tornar palpável o peso da passagem dos dias e da dificuldade da odisseia, em que a fé do padre vai sendo testada cada vez mais radicalmente pela sua aparente incapacidade de sobreviver a esta “terra divina”.
No entanto, quando finalmente a expedição atinge seu objetivo (não sem perdas no caminho), há uma virada na trama e entendemos aquilo que, de alguma forma, Pálmason já vinha costurando cuidadosamente: o fato de que, embora a natureza fosse uma “adversária” na prática daquela expedição, o que se desenhava ali era uma questão entre humanos. Nesse momento, vêm de vez para o primeiro plano os vários níveis de conflito que se armavam até então: entre nacionalidades (dinamarquês e islandês, numa questão muito bem trabalhada no filme a partir das línguas faladas pelos distintos personagens); entre o “civilizado” e os “selvagens”; entre a fé e o materialismo. E aí, o protagonista descobrirá que a natureza que parecia o ter levado até o limite está longe de ser o principal dilema com o que ele vai lidar.
Tudo isso é filmado por Pálmason com uma frontalidade desconcertante, tanto frente aos fenômenos naturais e os corpos dos homens quanto aos dilemas existenciais destes, num diálogo franco com tradições bem distintas de cinema, como se John Ford encontrasse Dreyer (e, nesse sentido, a filmagem em película 35 mm notável no material é mais um ponto de contato com um cinema anterior). Mas ainda que seu filme se ancore numa hiperconsciente tradição do cinema, ao mesmo tempo não parece fazer disso uma busca fetichista. A sensação é mais de uma aposta numa dimensão fundamental mesmo da expressão cinematográfica, e por isso sua atenção aos detalhes de reconstituição histórica nunca parece próximo ao trabalho autocentrado de um Robert Eggers, por exemplo (que curiosamente realizou seu último filme na Islândia), e sim algo muito mais em contato com o que Kelly Reichardt atinge num First Cow ou O Atalho: o peso do mundo conforme vivido naqueles tempos precisando ser sentido nos corpos na tela, para poder ser comunicado para nós como sensação. De uma forma ou de outra, é um filme que deixa uma forte impressão.
Infelizmente não é o que acontece em outro filme que se passa numa região isolada onde a natureza se impõe como presença, mas onde também é o homem quem oprime seu semelhante. Nas regiões montanhosas e de floresta do filme costariquenho Domingo y la niebla, ainda que o western siga sendo uma referência forte, os diálogos mais claros do cineasta estreante Ariel Escalante Meza são com realizadores contemporâneos como Béla Tarr ou Apichatong Weerasethakul. Do primeiro, parecem vir os longos planos acompanhando frontalmente as caminhadas do seu personagem principal pelos espaços das estradas que conectam as casas isoladas da localidade; do segundo, uma maneira de trabalhar com o fantástico e o sobrenatural como elementos comuns aos cotidianos de suas personagens (de resto, uma tradição anterior latina forte, pelas mãos do realismo mágico). No entanto, malgrado conseguir criar um sentimento firme da vida naquela localidade, oprimida pela chegada irrefreável de um progresso que não tem lugar para a tradição e as vidas simples, o filme parece evoluir muito pouco, tanto dramática quanto concretamente, sobre o que propõe como jogo nos seus primeiros dez, quinze minutos. Parece sobrar ao filme derivações (de cenas, de narrativas, de efeitos visuais e sonoros), deixando de lado justamente a dimensão material determinante naquelas existências. Aqui, o cinema parece precisar se impor ao mundo, e não deixar o contrário acontecer.
É algo que de alguma forma também sentimos num filme bem diferente, o australiano The Stranger. Ainda que também passado em regiões remotas daquele país, nesse caso não ficam dúvidas desde o princípio de que as profundezas a serem exploradas são da ordem da alma dos seres humanos, especificamente daqueles envolvidos diretamente com a prática criminosa (seja um potencial assassino, seja os policiais que tentam captura-lo). Como narrativa, trata-se de um filme bastante intrigante na maneira como começa parecendo explorar as relações entre personagens, introduz uma trama aos poucos, até se tornar efetivamente um filme policial no sentido mais estrito do termo (inclusive num sentido tão estrito que na sua parte final parece quase um institucional do bom funcionamento dos métodos investigativos dedicados da polícia australiana).
Cada uma dessas passagens de tom vai se dar a partir, principalmente, do trabalho dos seus dois atores principais, Joel Edgerton (o policial) e Sean Harris (o criminoso em potencial), e da relação que se estabelece, e depois coloca-se em crise, entre eles. O que poderia resultar num filme bastante perturbador, exceto por um problema: o fato de que Thomas M. Wright não parece confiar exclusivamente na combinação dos seus atores e da força da sua história para atingir esses resultados. E assim, ele sente uma curiosa necessidade de afogar a sua trama, passo a passo, em hipersignificações estéticas e dramáticas que, ao contrário do desejado efeito desestabilizador buscado, só banalizam mais e mais a essência do que se passa na tela. A cada intervenção exagerada da trilha sonora, a cada construção de plano excessivamente preocupada com os escuros e com chamar a atenção para o desejo de causar confusão sensorial, a cada efeito de montagem mais estridente, nos afastamos mais e mais do que de fato é o cerne do filme todo: o jogo que se passa dentro de cada um daqueles dois personagens. Dessa maneira, quando chegamos ao desenlace dramático e humano final, estamos esgotados pelo tanto que o filme nos impõe o seu peso como algo que precise ser explicitado, e não simplesmente sentido.
Um efeito similar a este é o que sentimos em outro filme ao redor da incerteza por detrás de um crime, que pode ou não ter sido cometido pelo personagem principal, o turco Burning Days. Aqui, porém, não se trata de um efeito over no manejo da estética, mas sim do roteiro: ao longo de enormes 2 horas e 15 de duração, o filme perde muitas chances de buscar uma concisão que sua trama parece pedir, ainda que trazendo camadas variadas em jogo (questões de violência de gênero, do conflito entre cidade grande e interior, tensões étnicas, de corrupção política e história, etc). A questão é que, na medida em que o seu personagem principal mergulha num clima de paranoia e perseguição, não conseguimos exatamente sentir isso junto com ele porque o filme parece muito preocupado em elencar pistas falsas, em perder tempo com personagens secundários bastante óbvios e mal desenhados (além de atuados com discutível efeitos) – em suma, com quase tudo que não seja o principal. Assim, temos um segundo filme “de crime” onde o diretor parece sentir que o dilema no seu cerne não basta, sendo preciso circundá-lo com mais e mais sentidos para além do que há de mais básico – e, assim, se perde o foco e a capacidade de comover, obrigando a se assistir ao espetáculo de longe.
Comoção que é o que consegue atingir, de maneira quase invisível, o filme japonês Plan 75, no qual a diretora estreante Chie Hayakawa parte de uma ideia surpreendente simples (embora engenhosa): e se no futuro próximo sociedades como a japonesa criassem uma política de estado para “se livrarem” dos seus habitantes mais velhos como forma de diminuir seus problemas sócio-econômicos? Disso, que poderia funcionar como apenas um conceito “esperto” para uma ficção distópica, Hayakawa logo vai se descolar para se dedicar intensamente a uma observação cotidiana de três personagens envolvidos de maneiras muito diferentes com o processo estatal montado para gerir tal política. Essa escolha é muito inteligente porque permite a ela destrinchar o funcionamento de um sistema que busca se impor pela racionalidade burocrática e econômica sobre a existência humana: é como se depois de enfrentarmos a natureza no passado, em um filme como Godland, agora no futuro próximo sobrasse como desafio principal aos humanos justamente lidar com a gestão completamente anti-natural da existência pela sociedade, conforme esta foi organizada pela nossa raça.
Nesse sentido, a aposta de Hayakawa é justamente no contrário de tudo que vimos nos filmes anteriores, em que o homem sempre busca impor ao seu semelhante a submissão ou a danação. A partir dos micro-laços que vai traçando de forma quase imperceptível numa sequência de cenas aparentemente desconectadas, a diretora vai criando uma teia de gestos insubmissos que mal se percebem como tal. Assim como se busca sobreviver a todo custo frente à natureza inclemente num filme, aqui parece que o instituto humano da continuidade buscar sobrepor-se às armadilhas criadas por nós mesmos ao constituirmos nossas sociedades. É, no fundo, um filme de enorme simplicidade, que termina se colocando como uma aposta alta no contexto dos tempos que vivemos (no mundo, mas particularmente no cinema feito e apreciado hoje em eventos como Cannes): a de que se deixados por sua própria conta, e apenas observados, talvez os seres humanos também sejam capazes da compaixão e da empatia, para além de toda a selvageria que rege a luta pela existência. “Imagine todas as pessoas”, disse em algum momento o poeta (de resto, assassinado jovem).
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