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Cento e Quatro

Sem capitães

(Einhundertvier, ALE, 2023)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Jonathan Schörnig
  • Duração: 93 minutos

104 sul-africanos são encontrados por uma equipe marítima alemã em um bote salva-vidas após o navio onde estavam ter afundado. Na tentativa de resgate desses homens, o grupo percebe que o bote também está danificado e não vai restar muito tempo até que a segunda embarcação também afunde. De posse dessas informações, entramos em Cento e Quatro apreensivos, com angústia crescente e uma sensação ruim constante, por saber como muitas dessas histórias terminam. No grupo de competidores internacionais do É Tudo Verdade 2024, o filme dirigido pelo alemão Jonathan Schörnig é tão simples quanto eficaz no que está mostrando, e o espectador simplesmente segue hipnotizado no que vê. 

Em posse da produção, existem 6 câmeras diferentes que mostram em detalhes o passo a passo desse resgate, e que dividem a tela de Cento e Quatro em um mosaico, ininterruptamente e em tempo real. Isso é a totalidade do que vemos, mas não tem como imaginar que isso seja insuficiente na frente de tais imagens. A tensão que o filme cria é incômoda em muitos sentidos, incluindo aqueles que segregam aqueles mesmos homens e os levam a tantas dessas jornadas todos os dias. No fracasso da tentativa de uma vida melhor, tais figuras confrontam a derrota de um sonho para a realidade, e gradativamente o que era um ato tenso se desdobra continuamente, até que mais nada do que aconteça no filme não seja passível de desespero. 

Politicamente falando, 104 homens negros e marginalizados pela História mais uma vez estão à mercê de homens brancos que os ajudam e mostram a face da bondade – tem um baita filme nessas imagens. No contexto histórico, o que deveria ser uma situação de resolução simples, rapidamente mostra outros lados, refletindo um caráter que ninguém ali se imagina reproduzindo. É o grupo que detém o poder insurgindo contra a liberdade negra, mais uma vez; ditando uma série de ordens que mostram seu contínuo descontrole, a partir de qualquer arranhão. Sem querer, o que deveria (e provavelmente quereria) ser uma obra humanista, se desenvolve como um conjunto de camadas que revelam mais uma vez as muitas tragédias sociais e raciais que ainda ecoam hoje.

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O dispositivo usado em Cento e Quatro é curioso e não tem retira da produção nada que ela possa guardar de surpreendente, pelo contrário. A vida real consegue ser bem mais fora do comum que a ficção, e a prova acontece aqui. O que seriam as filmagens sobre o processo de resgate de um grupo de refugiados, acaba por ganhar contornos dramáticos quando na cena entram outros elementos igualmente concomitantes. Então, o que teria inicialmente um desfecho reconhecível e até rápido, perdura por mais do que se imaginava, e os planos filmados acabam por permitir que ainda mais perturbação esteja em cena. São um grupo novo de eventos que avança pelo que está estabelecido, criando novas possibilidades narrativas. 

O trabalho maior de Schörnig foi perceber o potencial dramático que é estabelecido entre o grupo filmado, salvadores e salvos. Os contornos político-sociais criados estão nos planos, mas principalmente estão no que é criado pelos próprios personagens. É nesse momento que salta na nossa direção que Cento e Quatro se organiza de maneira simples, e é a vida real quem dá as cartas para completar o jogo de cena. Essa é a magia criada aqui, que não se acanha em revelar o mais agudo do ser humano em situações adversas. E que essas situações não ajudam a trazer novo olhar sobre nós, e sim libera toda a nossa verdade, boa ou má. 

Um outro detalhe que Schörnig revela (a quem poderia desconfiar do contrário) é, sem querer, a verdadeira cara da Europa. Ao lado de Zona de Exclusão – mas da maneira isenta como Agnieszka Holland nunca sequer sonha realizar – Cento e Quatro tira a poeira de cima do que poderia ser imaginar a respeito da crise migratória. Se Fogo no Mar e Eu, Capitão lidam com as imagens de maneira ambígua, nunca revelando a verdade por trás das ações, aqui o breve epílogo coloca as coisas nos seus lugares: a crise da falta de empatia é ainda mais crescente e alarmante do que a migratória.

Um grande momento

Um novo barco

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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