Crítica | FestivalCríticas

Moto

Corpo livre

(Moto, ARG, 2023)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Gastón Sahajdacny
  • Roteiro: Gastón Sahajdacny
  • Duração: 65 minutos

Particularmente, minha relação com Moto, filme que compete na Cine BH 2023, foi assolada não apenas pelo encantamento com as imagens, mas principalmente com uma ideia anti-Richard Linklater que assola aquela narrativa. Embora não falte verbalização na produção, ou seja, estamos diante de um título que se constitui da forma mais adequada à sua própria organicidade, criando ou abolindo diálogos mas sem ser dependente deles, o que vemos aqui é a fabulação em contar história com predileção aos eventos. A câmera segue os atores, tenta ser testemunha de suas ações e acompanha as decisões de cada personagem fora da assertividade delas, mas já observando o movimento seguinte, o da ação. 

Todos os passos que o filme dá, principalmente os relacionados ao seu protagonista, o faz através da ação, de uma forma de contar a história a partir do que se coloca como um devir contínuo, de tal persona ou de sua própria ideia de administração desse movimento-espaço. Já parte do título do filme essa elaboração de sua constituição; a moto não apenas como uma definição de meio de transporte, mas principalmente da motorização da imagem, do uso dos personagens em tela, que escolhem estar sempre em transformação do corpo. É uma forma pouco teórica a que Moto sujeita o espectador, mas isso não significa de modo algum um lugar mais prostrado de sua narrativa. Em constância de sua atividade, o filme revela seu roteiro através desse campo ininterrupto de desassossego. 

O diretor e roteirista Gastón Sahajdacny desenvolve com acuidade essas duas molas propulsoras de uma produção, o que ele mostra e o que ele diz. Ainda que a atenção ao corpo em constante deslocamento seja a forma escolhida para contar essa história, Moto não se isenta de, assim sendo, contar o que precisa ser contado. Essa proposição é uma das mais acertadas que vi ultimamente na intenção de desenvolver um pensamento a respeito do que é uma narrativa, um roteiro propriamente dito. Porque nada em cena deixa de ser mais concreto por contar “apenas” com esses corpos na direção do futuro, em uma movimentação intensa de muitas verdades. A busca pela liberdade, a aceitação social, a compreensão de um sentimento novo, tudo aqui não procura o repouso. 

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Moto tem essa energia renovável de algo que não se esgota com facilidade; o espectador acompanha a rotina de Mariano, que é toda muito prosaica. Ele vende torrones pelas ruas de Córdoba junto a um grupo de amigos, tem sua motocicleta como principal meio de locomoção e acabou de conhecer Constanza, com o qual tenta estabelecer um contato mais próximo. É tudo tão simples quanto fascinante, dada as cores e texturas que Sahajdacny vai aplicando em sua estrutura, que sempre avança em suas curvas. Não é um grupo de imagens que propicie uma acomodação direta com o que se vê, porque, apesar da aparência frugal, o filme está em constante demonstração de introspecção em torno desse protagonista, tentando desvendar o que o move de verdade. 

Essa jornada acontece de maneira tão natural, que o espectador mais imersivo se verá a qualquer momento compartilhando daqueles episódios cotidianos com o mesmo fascínio com o qual o diretor nos apresenta. A cena da descida da ladeira, onde Mariano tenta vender uns últimos doces a cada transeunte, é de uma delicadeza tão arrebatadora, têm a mesma qualidade de aproximação de estarmos acompanhando em testemunho real uma polaróide social. Essa é uma característica de toda obra, em que toda cena parece pertencer àquele quadro perfeito de realidade, e seus detalhes acabam evocando a momentos que já presenciamos, de alguma forma. É nesse lugar que Moto encontra o cineasta da trilogia Antes do Amanhecer e transforma seu roteiro em uma peça que se dissocia do mesmo para obter o mesmo resultado – a textura de um tempo que avança continuamente, e que não volta mais. 

Quando, enfim, Mariano e Constanza começam a fazer sentido enquanto um amálgama delicado, Moto alcança o estado de libertação que seu protagonista parece perseguir em cada cena. A partir desse momento, temos a certeza que ele está pronto para erguer uma nova história a partir da sua. Toda a investigação imagética proposta se mostra então em consonância, mais uma vez, do que pede o roteiro, que tenta traduzir as angústias de uma fatia bem significativa da sociedade hoje, sua relação com o espaço urbano, com as aspirações que seu grupo social espera dele, com uma expectativa romântica. Em todas as áreas, com sucesso. 

Um grande momento

Mariano e Costanza anoitecem juntos

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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