Crítica | Streaming e VoD

Cinzas

Caminhos abertos

(Kül, TUR, 2024)
Nota  
  • Gênero: Romance, Suspense
  • Direção: Erdem Tepegöz
  • Roteiro: Erdi Isik
  • Elenco: Funda Eryigit, Alperen Duymaz, Mehmet Günsür, Gökçe Eyüboglu, Ulas Tusak
  • Duração: 96 minutos

Saber reproduzir uma fórmula a ponto de fazer a diferença nos dias de hoje, com tantas opções de entretenimento ao nosso alcance, é uma tarefa e tanto para qualquer produção. Cinzas é o mais novo título turco a estrear na Netflix, esse país que deve ser, tirando os donos da casa, a conseguir de maneira mais numerosa mostrar resultados dentro do serviço de streaming. E isso é o que tenta conseguir com resultados modestos porém bastante interessantes, essa inclusão a uma espécie de olhar sobre os caminhos entre a ilusão e a realidade em como a arte imita a vida, e vice versa. Deve ficar entre os mais assistidos dos dias carnavalescos para quem não está afim de folia, e existe justiça nesse título. 

Não sei quanto ao leitor, mas quem vos escreve passa mal de enjoo ao entrar no google e se deparar com a quantidade exorbitante de ‘finais explicados’ para qualquer espécie de filme que estreia no país. É uma forma de capitalizar em cima do emburrecimento do espectador, e igualmente uma forma de menosprezar a capacidade do público à fabulação, relegando cada um de nós a um pouco disfarçado campo da ignorância. Cinzas já provoca isso, e é triste que o cinéfilo caia tão fácil nessa armadilha, afinal se ela continua sendo armada, é porque não cansa de atrair incautos. Dito isso, não há nada em cena que não possa ser imaginado, e como o pŕoprio ato de ler deveria provocar a qual o filme é tão reverente, é necessário para que a jornada de Gokce envolva ainda mais.

Como dito, não há nada muito escalafobético em cena. Gokce é a esposa de um dono de editora que sempre lê primeiro os manuscritos que o marido recebe. Um dia, em seu colo cai ‘Cinzas’, um livro que a enfeitiça da forma como os melhores deveria fazer: a leva a pesquisar as regiões onde o filme se passa, conhecer os lugares onde tudo se desenvolve, e indo até a conhecer suas possíveis inspirações. Só que o livro termina com a morte de sua protagonista, e ela se apaixona por quem se imagina que seria o responsável por tal. A partir de então, Cinzas começa a desenvolver um jogo entre realidade e ficção que já alimentou tantas outras obras, mas que é conduzido aqui com tanta elegância, que nós mesmos compreendemos seu mergulho. 

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Erdem Tepegöz está em seu quarto longa metragem, e poderia estar servindo uma mal passada mistura entre Cinquenta Tons de Cinza e O Pescador de Ilusões, mas é um autor já com alguma segurança para compreender que saber filmar é muito mais da metade do caminho para o sucesso. O roteiro de Erdi Isik não tem nada demais, apenas delineia cada um dos três protagonistas com cuidado e entrega a eles três intérpretes competentes. O resto é trabalho de Tepegöz mesmo, que consegue imaginar o que um projeto pronto para exportação como os da Netflix precisam para alcançar lugares tão longe dele como o Brasil, e o que vemos é o campo aberto para as imagens. Seu olhar para o bom gosto da captura de planos não é suficiente para transformar Cinzas em uma obra singular, mas demonstra que o profissional não estava apenas à espera do cheque. 

É verdade que, assim como tantas outras versões dessa premissa, Cinzas apresente um comentário, mas não se esforce em desenvolvê-lo. É um retrato essencialmente social, sobre o que leva ao fascínio de alguém que vive em um universo de possibilidades infinitas e encontra refresco justamente em um lugar de ausência, em um mundo tão distante do seu. ‘ah, o fascínio é justamente esse’, tá… mas não há qualquer questionamento, nunca, sobre a forma prática disso? Existe a cena onde Gokce ouve de sua amiga justamente a respeito dessa entrega, mas o filme não tenta desenvolver suas questões. O interesse maior aqui é promover uma diversão menos rasteira do que estamos acostumados. 

Além do talento de Topegöz em apresentar em imagens muito bem esquadrinhadas, levando a atmosfera necessária para que tenhamos as experiências que Gokce imaginou ter passado ao adentrar sua leitura, o trio de protagonistas contribui para um ambiente que sugere o estado de espírito da obra. É um crescendo de paranoia e paixão alucinada que o filme não consegue nos apresentar uma saída, isso mesmo a minutos de seu fim. O trunfo de Cinzas talvez seja mesmo acreditar em um tipo de afunilamento que não estamos mais acostumados nos dias de hoje: qualquer coisa pode acontecer. O risco é desagradar mais do que seria permitido, mas isso faz parte do campo de alcance de um salto maior do que se imaginaria. 

Um grande momento

O primeiro beijo

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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