Cannes 2022: Como era gostoso meu (cinema) francês

Frère et soeur, de Arnaud Despleschin
(França, 2022)
Competição

Les Amandiers, de Valeria Bruni-Tedeschi
(França, 2022)
Competição


Don Juan, de Serge Bozon
(França/Bélgica, 2022)
Cannes Première

Chronique d’une liaison pasagère, de Emmanuel Mouret
(França, 2022)
Cannes Première

Les cinq diables, de Léa Mysius
(França, 2022)
Quinzena dos Realizadores


Como já mencionamos nessa cobertura, para além de sua dimensão internacional essencial, o Festival de Cannes possui um sentido bastante específico dentro do universo do cinema francês. Não por acaso é o momento em que estreia uma quantidade numerosa de filmes do país, aí incluídos quase sempre alguns dos principais lançamentos do ano para exportação, mas também para a temporada das premiações do final do ano. Desde 2021, o Festival, inclusive, criou uma nova seção chamada Cannes Première que, por mais que exiba um ou outro filme vindo de diferentes países, foi desenhada acima de tudo para conseguir encaixar um número maior de filmes franceses de diretores com mais renome e dar a eles a chance de terem uma sessão de gala no Festival.

É sempre divertido, nesse sentido, todo ano ver uma quantidade de críticos de outros países reclamando que “tem filmes franceses demais”: bem, com uma conta de 10 milhões de euros sendo bancada por recursos públicos nacionais, estranho seria imaginar que não usassem essa plataforma da maneira mais ampla possível para dar visibilidade mundial para seus filmes. Complementarmente a esta observação sobre a simples quantidade dos filmes, é comum também, principalmente nas revistas mais de mercado baseadas nos EUA ou na Inglaterra, uma reclamação de que vários desses filmes seriam “franceses demais”. Embora essa consideração sobre um excesso de francofonia seja muitas vezes baseada em banais leituras estereotipadas do que seria o cinema da França, é preciso também reconhecer que esse lugar imaginário sobre esse tal “cinema francês” é algo usado há muitas décadas pelas próprias instituições responsáveis pela exportação dos filmes do país, como que indicando uma declarada qualidade que atrairia por si mesma os públicos dos chamados “circuitos de arte” pelo mundo. De fato, é em algum lugar no meio desse jogo entre a manipulação desse estereótipo para finalidade comerciais e uma reação negativa ao mesmo, que muitas vezes acaba sendo colocada a régua de recepção dos filmes exibidos no Festival, justa ou injustamente. 

Shanna Besson Frère et soeur, de Arnaud Despleschin

Visto assim, uma parte considerável dos longas franceses exibidos até aqui em 2022 se encaixa como uma luva nessa disputa de narrativas entre o desagrado ou o projetado charme de “ser francês demais”. Peguemos, por exemplo, os dois filmes majoritários franceses exibidos até aqui na competição (haverá outros dois ainda): de um lado, o novo filme do autor contemporâneo que mais causa desagrado numa certa linhagem da crítica internacional que critica esse excesso de “francês” nos filmes (Arnaud Despleschin); do outro, um filme passado todo dentro do universo ao redor de uma companhia/escola de teatro, cheio dos romances de juventude e discussões sobre criação artística. Como esperado, as reações críticas a eles foram as mais conflitantes, em grande parte por motivos que se antecipavam totalmente aos filmes em si. Foi interessante, porém, ainda mais, assistir aos filmes nesses dias e os colocar frente a outras obras francesas exibidas em outras seções, pois daí saíam alguns diálogos possíveis bem esclarecedores justamente por acabarem provando que, mesmo nas semelhanças eventuais que existam, o tal do “cinema francês” é muito mais múltiplo do que se costuma imaginar nessas leituras imediatistas.

O novo filme de Despleschin, por exemplo, embora se relacione muito com uma linhagem específica dentro da sua obra (a dos filmes “de família” como Reis e Rainha, Conto de Natal, etc) conta com uma veia operística e romanesca saltada a um nível que alguns desses filmes até chegavam a ensaiar, mas não com o grau de mergulho aqui visto. Já nas duas primeiras sequências, o filme apresenta suas armas com tudo, num tom tantas oitavas acima de qualquer naturalismo que cabe ao espectador decidir de saída se topa ou não esse jogo (desnecessário dizer, de novo, que muitos por aqui já diziam um sonoro “não!”). Dali por diante, se vê Despleschin radicalizando sua narrativa por dois caminhos: a dedicação plena ao jogo dos atores, algo que sempre lhe causou muito prazer mas que aqui vai ainda mais longe; e a quebra tanto de noções de causalidade mais diretas (o filme se dedica principalmente a destrinchar as relações ao redor de um irmão e uma irmã marcados por um ódio entre eles cristalizado e inexplicável) como, principalmente, um gosto pelas reviravoltas e pelas sequências dó de peito – os grandes diálogos, os confrontos e as mortes, os (literais) voos pela cidade. Embora um tanto irregular, é mais um filme de Despleschin marcado por um gesto de confronto a um regime mais comportado da ficção que é difícil não admirar.

Cortesia La Quinzaine des Réalisateurs Les cinq diables, de Léa Mysius

Algo disso também se vê num filme realizado por uma antiga colaboradora em roteiros de Despleschin: trata-se de Les cinq diables, exibido na Quinzena dos Realizadores e a segunda direção de Léa Mysius. Aqui também vemos o desapego ao naturalismo e o mergulho numa teia de enigmáticos laços familiares, entre pais e filhos, irmãos e irmãs, amigas. Mas Mysius aposta de maneira mais firme num diálogo com o sobrenatural como forma de ancorar uma parte da sua narrativa, a partir de uma ideia interessante de uma personagem que atravessa os tempos da história. No entanto, uma vez que se estabelece essa dinâmica, o filme parece girar em falso numa lógica de revelação sobre o passado para iluminar os mistérios do presente que termina parecendo pouco orgânica, deixando suas personagens patinando um pouco num esquematismo. Mas parece promissor acompanhar aonde mais Mysius pode tentar levar esse cinema tão fora do comum que parece buscar, com influências quase lynchianas bastante perceptíveis na forma de usar a narrativa ficcional a partir de atmosferas e certas imagens basilares. 

Já o outro filme da competição que mencionamos, Les Amandiers, de Valeria Bruni-Tedeschi, se insere numa linhagem bastante presente em Cannes, do retorno a experiências e momentos históricos marcantes na vida de seus realizadores. Pois a diretora foi, como atriz, parte da escola e companhia de teatro que realmente existe e que ela retrata por tintas ficcionais aqui, localizando sua história em meados dos anos 80 – com a chegada da AIDS sendo uma marcante participação na narrativa. O filme tem essa autenticidade típica das experiências em primeira pessoa, e consegue nos transportar para aquele tempo e local com considerável eficácia. No entanto, fica a sensação de que, ao se utilizar de certas fórmulas e personagens excessivamente conhecidos nesse recorte do “filme ao redor de coletivos artísticos” não se impõe totalmente, seja em algumas linhas narrativas que evoluem de maneira por demais esperada (caso do personagem viciado em drogas), seja em certas caracterizações hipertrofiadas (mais do que todas, a de Louis Garrel interpretando a Patrice Chereau, o diretor do grupo de teatro real).

Ad Vitam Production/Agat Films et Cie/Bibi Film TV/Arte France Cinéma Les Amandiers, de Valeria Bruni-Tedeschi

Curiosamente, havia na seção Cannes Première uma realização mais interessante ao lidar com esse universo tão caro ao cinema francês, que é o dos atores e artistas em geral: o Don Juan, de Serge Bozon, que reimagina essa figura mítica como um ator de teatro que é abandonado no dia do seu casamento pela noiva (também atriz), e que entra numa crise pessoal e criativa a partir daí. As maneiras como Bozon desmonta e joga com essa figura do galanteador e sedutor serial, ao mesmo tempo tornando-o vítima do seu próprio veneno, mas também um ator que parece sempre estar tentando interpretar um papel, é muito interessante. É um filme que, para nós brasileiros, cria uma conexão bem curiosa com o cinema de Julio Bressane, especialmente em investigações sobre o masculino e o feminino como em A Erva do Rato, Cleópatra, Garoto ou Capitu e o Capítulo. Vemos aqui o mesmo espírito jocoso e livre, a forma de lidar com arquétipos e com gêneros cinematográficos, o rigor no uso da luz e da construção de quadros. Um filme extremamente francês, diriam alguns, que nos faz pensar num cineasta brasileiro que faz filmes como nenhum outro – curioso, pra dizer o mínimo.

Mas, de fato, talvez o filme que poderia ser epitelialmente considerado o “mais francês” em meio a todos esses seja o mais bem resolvido e forte de todos eles: o novo filme do cada vez mais preciso e cirúrgico Emmanuel Mouret, Chronique d’une liaison pasagère. Mouret usa aquela forma mais básica: um homem e uma mulher se encontram, se atraem, se amam, e a coisa vai se complicando daí por diante. Mas se o ponto de partida é mais que batido, a maneira como ele mergulha nele e o explora tem um frescor acachapante. Contando com atuações solares ao extremo de Vincent Macaigne e Sandrine Kiberlain (quase o tempo todo só tendo os dois na tela, salvo a entrada de uma personagem decisiva em seu ato final), o filme faz um trajeto gradual e firme da comédia rasgada em sua encarnação mais cinematográfica (leia-se extremamente dependente do timing de seus cortes, do jogo de atuação nos diálogos, dos enquadramentos precisos) até ir nos puxando para observações cortantes sobre as profundidades das relações amorosas (mesmo quando se pretendem declaradamente serem leves), e quando vemos estamos assistindo uma quase tragédia (ênfase no quase, porque não se chega aí) que nos cativa completamente. 

Pascal Chantier Chronique d’une liaison pasagère, de Emmanuel Mouret

É um grande filme disfarçado de “divertissement”, reforçando Mouret como um dos principais autores contemporâneos do cinema francês – mas curiosamente ainda bastante pouco encaixado como tal, entendido mais como um cineasta “comercial de qualidade”. Se fosse mesmo essa a tal típica qualidade do cinema francês, seríamos todos muito mais felizes – detratores e entusiastas desse cinema. Mouret é daqueles cineastas que faz com que pareçam especialmente tolos esses rótulos que tão pouco dizem: comercial? Autoral? De qualidade? Francês demais? Que importa, é grande cinema, daqueles que ficam. O que nem sempre é o caso, no cinema francês como em quase nenhum outro, mas que também pode acontecer nos lugares mais inesperados. Vale é estar aberto ao encontro – como os personagens de Macaigne e Kiberlain bem sabem.

[75º Festival de Cannes]

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