Direito em Cenas: A Bela e a Fera

O conto de fadas “A Bela e Fera”, de Gabrielle-Suzanne Barbot, virou um clássico da Disney e depois foi transformado em live-action pelos estúdios. Emma Watson, que já havia ganhado o público com Hermione, foi escolhida para viver a protagonista, e continuou com nossos corações ao dar vida à Bela.

O roteiro do filme de desenho transformado em história de gente de verdade sofreu algumas alterações, tanto nas letras das músicas, quanto na relação de alguns personagens, como a paixão platônica de Le Fou (Josh Gad) por Gastón (Luke Evans), mas manteve sua essência principal.

A trama do desenho e do filme gira em torno de Bela, uma jovem, à flor da idade, filha do inventor Maurice (Kevin Kline), tido como louco por todos da cidade, que está cansada da vida no interior e se vale de suas leituras para escapar um pouco de sua repetitiva realidade. Sempre sonhando acordada, ela é encantada pelas histórias contadas em livros, e o seu preferido é aquele que tem um “lindo quadro, quando eles se encontram no jardim… é o príncipe encantado, mas ela só descobre quem ele é quase no fim”.

A história favorita vira exatamente o que acontece com Bela quando ela resolve salvar a vida do pai trocando de lugar com ele, que fora feito prisioneiro e agora vivia sob cárcere privado dentro do castelo de Fera (Dan Stevens) como punição pela invasão de sua propriedade para colher algumas flores. A jovem já percebe a falta de empatia pela realidade que encontra no local com pessoas amaldiçoadas e transformadas em objetos.

Ao sugerir a troca, Fera vê em Bela uma chance, afinal, ele sabe que somente o amor verdadeiro seria capaz de quebrar o feitiço que o amaldiçoara, junto com todos do castelo. Porém, ela se recusa inicialmente a ter qualquer contato com a figura que a mantinha em cárcere privado, o que não demora para mudar, já que a moça percebe que sua sobrevivência depende da boa convivência com o dono do castelo.

A seguir, o filme transcorre evidenciando um claro desenvolvimento da síndrome de Estocolmo, um transtorno psicológico comum em vítimas obrigadas a passar muito tempo com seus agressores, bem como ocorre geralmente em crimes de longa duração, denominados “crimes permanentes”, em que uma prática delituosa se prolonga por várias horas ou dias.

O transtorno em questão inicia bem como retratado no filme: a vítima, por instinto de sobrevivência, busca ter relações amigáveis com seu agressor, pois seu subconsciente tem a noção de que a falsa empatia com o agressor poderá protegê-la e/ou mantê-la viva por mais tempo. A seguir, a empatia inicialmente forçada se torna real e a vítima cria real apreço pelo agressor, pois sente que a própria vida depende da aceitação e do carinho do agressor.

A síndrome em questão foi alcunhada de “síndrome de Estocolmo” quando quatro vítimas de assalto a um banco em Estocolmo foram mantidas em cárcere privado por 6 dias e, após jogar baralho e manter uma boa convivência com seus agressores, decidiram protegê-los da ação policial, chegando a usar os próprios corpos de escudo humano, para garantir que a polícia não os machucasse após o término do assalto.

No Brasil, essa síndrome chegou a garantir a impunidade de agressores sexuais que conseguiam envolver tanto suas vítimas, a ponto de casar-se com elas. É o que dizia o Código Penal, quando determinava que:

Art. 107 – Extingue-se a punibilidade:
VII – pelo casamento do agente com a vítima, nos crimes contra os costumes, definidos nos Capítulos I, II e III do Título VI da Parte Especial deste Código;

Apesar de os dispositivos acima terem sido revogados do Código Penal, assegurando que o criminoso sexual seja punido, independentemente de suas vítimas terem ou não com eles empatia, afeto, ou contraído matrimônio, o Código Civil demorou mais de 10 anos para mudar o pensamento antiquado, que assegurava que vítimas menores de 18 anos poderiam antecipar a idade núbil (entendida como a idade para contrair matrimônio), a fim de casarem-se com seus agressores:

Art. 1.520 – Excepcionalmente, será permitido o casamento de quem ainda não alcançou a idade núbil ( art. 1517 ), para evitar imposição ou cumprimento de pena criminal ou em caso de gravidez.”.

Isto é: somente em 2019 a síndrome de Estocolmo de vítimas menores de 18 anos deixou de ser considerada motivo plausível para permitir o casamento da vítima com o agressor, com o propósito de evitar a imposição de pena.

Hoje, em 2021, contudo, a realidade da síndrome de Estocolmo como forma de assegurar a impunidade dos agentes agressores já não é mais possível, a menos, é claro, que tais vítimas não denunciem os crimes que contra elas foram cometidos (em casos de crimes de ação penal privada ou ação penal pública condicionada à representação), e/ou ninguém tenha conhecimento dos mesmos, para denunciá-los (em casos de ações penais públicas incondicionada à representação).

No caso do filme, porém, datado de 2017, ainda estava vigente a lei civil que permitia o casamento, antes da idade núbil, para evitar a imposição ou o cumprimento da pena criminal, portanto, a vítima Bela, originalmente com a idade de 17 anos, poderia tranquilamente casar-se com o Fera, de 21 anos de idade, na tentativa de assegurar sua impunidade pela prática do crime de sequestro e cárcere privado, por ele cometido..

Não é demais destacar que, sendo um transtorno psicológico, apesar de não mais conseguir garantir a impunidade dos agressores, a síndrome é inevitável e todos estamos sujeitos a desenvolvê-la, em casos de situações extremas envolvendo a privação de liberdade, e é de suma importância que o assunto seja devidamente abordado, para evitar que as pessoas tenham em mente a apresentação romantizada do mesmo, e deixem de verificar sua real periculosidade.

Ver “A Bela e a Fera” na Disney+

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