A Justiceira (Miss Meadows)

A Justiceira (Miss Meadows) conta a história de Mary Meadows, uma professora substituta de ensino fundamental, que parece levar uma vida pacata, vestindo roupas tradicionais, calçando sapatos de sapateado, usando uma linguagem rebuscada e conversando diariamente com sua mãe por telefone, para contar de seu dia.

O que os vizinhos, alunos e colegas de Meadows não imaginam, contudo, é que a querida e dedicada professora é uma vigilante, que anda com uma pequena arma em sua bolsa de mão, e não teme em fazer justiça com as próprias mãos, quando está em situações de perigo ou para salvar qualquer pessoa indefesa.

A vida de Meadows parece seguir tranquila, entre assassinatos de criminosos e aulas às crianças, até ela se envolver com um policial, a quem ela não pode revelar seu segredo, mas, ao mesmo tempo, para quem ela não consegue mentir ou esconder sua vida secreta, mesmo porque Meadows, apesar de assassina, carrega consigo certa ingenuidade, que a faz acreditar cegamente que suas atitudes são justificáveis, uma vez que consumadas contra infratores.

O filme traz à tona um debate que muito comumente é atrelado à figura do herói de Gotham City, Bruce Wayne (o Batman), mas que, desta vez, protagonizado por uma mulher, e diz respeito à legitimidade e legalidade da atuação dos vigilantes em locais onde a criminalidade pareça ter tomado conta do ambiente.

Inicialmente cumpre explicar que no chamado Estado Democrático de Direito, tal qual aplicado hoje no Brasil, a proteção dos bens jurídicos (sejam eles bens jurídicos materiais ou imateriais) é feita pelo próprio Estado, que substitui a vítima no processo, para a garantia de uma ordem jurídica e de uma paz social.

Neste sentido, o antigo conceito de autotutela, isto é, proteção dos próprios bens com as próprias mãos, foi substituído pelo chamado ius puniendi, que nada mais é do que o direito de punir, que o próprio Estado detém quando se depara com indivíduos que, diante das normas, decidem desobedecê-las e lesarem os direitos alheios.

O que verificamos neste Estado Democrático de Direito é um cenário onde o ordenamento jurídico, conformado pelo conjunto de normas legais, é o balizador do comportamento social, havendo uma hierarquia entre estas leis e estando, no topo da cadeia hierárquica, a Constituição Federal.

Especificamente no Brasil, é a Constituição Federal que determina os direitos e garantias individuais de todos os cidadãos, além de garantir direitos sociais, dentre outros. À luz do disposto na Carta Magna, o Estado é o único responsável pela criação de leis federais aptas a prever quais condutas são crimes e, paralelamente, o único capaz de punir os indivíduos que consumam estes crimes.

Uma vez em que o Estado é o responsável pela manutenção da paz e ordem social, o mesmo deixa de ser mero possuidor do direito de punir, e passa a ter um verdadeiro dever de atuação, diante da existência do ius puniendi, razão pela qual se diz haver um poder-dever de agir, pois o Estado, diante do crime perpetrado, pode e deve agir: pode, porque é de sua competência; e deve, porque, ao criar um óbice aos próprios indivíduos, para que deixem de fazer justiça com as próprias mãos, tem a obrigação de apresentar uma resposta à sociedade.

O que se verifica em um Estado Democrático de Direitos, portanto, é a previsão constitucional de normas que impedem os indivíduos tanto de lesarem os bens jurídicos alheios, quanto de se vingarem com as próprias mãos, quando vítimas de quem lese seus direitos. Isso visa a garantia de todos os direitos àquele que for acusado da prática delitiva (desde a persecução penal – investigação, para angariar provas de que o indivíduo é, de fato, autor de crimes – até uma sentença condenatória devidamente fundamentada).

Quando, contudo, estamos em um Estado que se diz Democrático e prevê a vedação à autotutela, mas se mostra ineficiente na prevenção e repressão à prática delitiva, surgem os chamados “vigilantes” (tais como Mary Meadows, ou o velho conhecido Bruce), que, não raras vezes, têm suas condutas legitimadas pela própria sociedade.

O discurso dos vigilantes é sempre fundado no argumento de que o crime está tomando conta das cidades e, portanto, alguém precisa agir para sua prevenção e repressão, uma vez em que o Estado, por meio de suas forças armadas, já não é mais capaz de reprimir a prática delitiva, nem de assegurar o bem-estar ou a paz social.

Ao lado deste discurso, a sociedade legitima os atos perpetrados pelos vigilantes, ao argumento de que o Estado é incapaz de assegurar ao “cidadão de bem” os direitos previstos constitucionalmente e, consequentemente, somente são privilegiados aqueles que desejam delinquir, logo, qualquer indivíduo que atue, de forma mais agressiva ou não, contra infratores, merece aplausos, pois “faz o que o Estado deveria fazer”.

Aliado aos discursos acima, há ainda a existência de uma indignação popular e um descrédito do aparelho estatal, quando se verifica que os próprios órgãos de repressão ao crime (polícias, promotorias, legislativo ou judiciário) também se deixam levar pela prática delitiva, e sucumbem à corrupção, razão pela qual não raras as vezes vazam escândalos de corrupção envolvendo chefes destas áreas.

Todos estes fatores parecem ser legitimadores da atuação dos vigilantes, que se dizem aliados do Estado, à medida em que combatem o crime com as próprias mãos, assegurando o bem-estar social prometido pela própria Constituição Federal.

Como bem retratado no filme, não é raro, inclusive, que próprios membros de órgãos destinados à repressão de crimes aplaudam a atuação dos vigilantes, dizendo que têm respeito por eles, na medida em que eles conseguem “limpar a cidade”, de uma forma que os direitos humanos não permitem que órgãos estatais o façam.

Apesar de o conceito da moral social dar legitimidade a estes vigilantes, é preciso destacar, contudo, que a atuação destes indivíduos, ao contrário do que se afirma, não é amparada por qualquer lei, mas, ao revés, é expressamente proibida pelos dispositivos constitucionais e legais que asseguram o direito à ampla defesa, ao contraditório, ao devido processo legal, à vida, à segurança e à saúde de qualquer indivíduo, ainda que ele tenha incorrido em crime.

A ineficiência do Estado não é, por si, capaz de gerar um cenário que afaste o ius puniendi estatal e traga de volta a aplicação do instituto da autotutela, sem observar qualquer direito constitucional do acusado, até mesmo porque os vigilantes também erram e, tendo em vista que suas punições costumam ser bem mais agressivas do que as estatais (já que eles não se vêem limitados por qualquer lei), não seria difícil imaginar um cenário em que uma pessoa inocente fosse vítima de um vigilante que a puniu incorretamente – o que evidencia a necessidade de garantia de um devido processo legal.

Ao analisar especificamente o filme, pode-se alegar, ainda, que no caso da senhorita Meadows, não haveria razões para questionar a atuação dela, uma vez que ela age com legítima defesa, porque só mata aqueles que colocam em risco sua vida ou a vida alheia, contudo, este mesmo argumento se mostra falho quando se memora a cena do padre, que não colocou em risco a vida da professora ou do jovem, e não se pode dizer que ela usou moderadamente dos meios necessários para repelir injusta agressão, porquanto o padre estava desarmado e ela desferiu disparos de arma de fogo contra ele.

É compreensível que um senso moral queira justificar e legitimar as condutas da professora, bem como é retratado nos diálogos dos policiais do filme, contudo, é importante lembrar que a conduta de qualquer vigilante é tão ilegal quanto a conduta de quem comete qualquer outro crime descrito no Código Penal.

A única coisa que distingue um crime do outro é a motivação do agente criminoso: no caso dos vigilantes, eles se justificam com a alegada proteção do bem-estar social; no caso dos criminosos que cometem outros crimes as justificativas variam desde “precisava para se manter vivo” até “por mero prazer de fazê-lo”. E daí surge o questionamento: e quem garante que o vigilante, ciente da legitimidade que a sociedade dá a seus atos, não comete os crimes por simples prazer de matar? E, sendo esta a real motivação, o seu senso moral ainda legitimaria a atitude deste vigilante?

(Miss Meadows, EUA, 2014, 88 min.)
Comédia | Direção: Karen Leigh Hopkins | Roteiro: Karen Leigh Hopkins
Elenco: Katie Holmes, James Badge Dale, Callan Mulvey, Jean Smart, Mary Kay Place, Ava Kolker, Stephen Bishop, Kate Linder, James Landry Hébert, James Keane, Graham Beckel

Ler a crítica de Cecilia Barroso

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