Direito em Cenas: Branca de Neve e os Sete Anões

Mais um clássico dos contos de fadas, a história Branca de Neve e os Sete Anões, além de ganhar o público juvenil, através de sua representação animada pelos estúdios Disney, sendo o primeiro longa animado da Disney, de 1937, ele ainda foi representado em live action, em 2012, protagonizado por Kristen Stewart, interpretando Branca de Neve, ao lado de ninguém menos do que Charlize Theron, fazendo o papel da Madrasta Má.

Antes das belas histórias romantizadas, contudo, foram os irmãos Grimm quem decidiram registrar por escrito o conto da garotinha que, nesta versão, com apenas 7 anos de idade, foi vítima da crueldade e inveja de sua madrasta, quem contratou um caçador para matar a criança e trazer órgãos dela para comprovar o homicídio, contudo, com pena da infante, o caçador mata um javali em seu lugar, e leva seus órgãos para a Madrasta Má, que os devora.

Assim como no longa da Disney, a história dos irmãos Grimm revela a ira da Madrasta Má, ao descobrir que teria sido enganada pelo caçador, bem como sua decisão de fazer o serviço com as próprias mãos e, ela mesma, matar a garota. No conto dos irmãos, são três as tentativas de matar Branca de Neve: uma com um espartilho demasiadamente apertado, que deixa a criança desacordada, e os anões a salvam; outra com um pente envenenado; e, por fim, com a maçã envenenada, tal qual a versão do longa.

Nessa versão dos Grimm, contudo, o príncipe Florian, por mais que tenha aparecido ao velório da princesa envenenada, não é o seu salvador: na verdade, a garota teria engasgado com a maçã, que ficou entalada em sua garganta, e os anões, ao esbarrar no caixão do velório, movimentam o corpo da jovem desacordada, permitindo o desengasgo e o consequente salvamento da princesa.

Apesar de o conto dos irmãos Grimm relatar com preciosismo a crueldade da Madrasta Má, nas três tentativas de homicídio, e certa crueldade da própria Branca de Neve e do príncipe Florian, que obrigam a Madrasta Má a dançar com sapatos de brasa até sua morte, o verdadeiro perigo reside na “bela” história de amor retratada pelos estúdios Disney, que romantizam e ensinam valores extremamente deturpados às crianças e adolescentes.

Primeiramente, salta aos olhos a tentativa de sempre endemoniar a figura das madrastas, a qual está presente tanto em Branca de Neve, quanto em Cinderela, mas, afora o fato de a madrasta ser uma cruel criminosa, o perigo reside na exibição de um crime sexual, contra uma jovem, em situação de vulnerabilidade, como se um ato de amor fosse.

Primeiramente, é importante explicar que, um pouco diferente do que os irmãos Grimm escreveram, a princesa Branca de Neve, de 1937, tinha apenas 14 anos de idade quando passou a ser vítima das cruéis perseguições de sua madrasta, ao passo que seu “salvador”, o príncipe Florian, tinha 18 anos.

Neste sentido, verifica-se que o príncipe em questão, ao argumento de que estaria tentando salvar a vida de uma jovem – que ele só viu uma vez na vida -, lhe dá um beijo na boca, enquanto ela está supostamente morta, fazendo-a despertar, afinal, aquele teria sido o beijo de amor verdadeiro.

Talvez precisássemos urgentemente conversar sobre a gravidade de retratar o “amor verdadeiro” como sendo aquele sentido por alguém que se viu apenas uma vez na vida, e de quem não se tem qualquer conhecimento aprofundado, de nome, endereço, telefone, vida pregressa, enfim, nada. Afora o fato de que: como assim seu amor verdadeiro sai por aí beijando cadáveres de mulheres veladas na floresta?

Mas não vamos focar nisso e vamos apenas tratar da parte jurídica: o príncipe em questão, para os fins legais, no Brasil, já teria atingido a maioridade, razão pela qual pode ser penalmente punido por seus atos criminosos praticados, ainda que os mesmos o tenham sido sob o véu da desculpa de estar tentando fazer o melhor para a vítima – todo mundo que já esteve em um relacionamento abusivo já ouviu a frase “mas eu só queria o seu melhor”, não é mesmo?

Bem, atingida a maioridade, o rapaz encontra uma jovem de 14 anos de idade – fator que, segundo a lei, por si só, já configura a vulnerabilidade -, desacordada, após ser envenenada por sua madrasta, e decide beijá-la, ao argumento de que tentaria salvá-la.

Restando comprovado que a intenção do jovem, com hormônios a flor da pele, dado sua idade, não era a de salvar a jovem princesa, mas sim satisfazer lascívia própria, passamos à análise do tipo penal em que o ato praticado por Florian se enquadraria: importunação sexual, descrita no Código Penal como a prática de ato libidinoso, sem a anuência da vítima, com o objetivo de satisfação da própria lascívia, ou de terceiro; ou estupro, descrito com o constrangimento de alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou praticar, ou permitir que com ele se pratique, qualquer outro ato libidinoso.

Ao ler os tipos descritos nos artigos 215-A e 213 do Código Penal, a primeira reação poderia ser a de dizer que Florian não agiu com violência ou grave ameaça, portanto, sua conduta estaria enquadrada ao crime de importunação sexual. Ledo engano.

O crime de importunação sexual, descrito no artigo 215-A tem natureza subsidiária, ou seja, ele só resta caracterizado quando a conduta praticada pelo sujeito ativo, além de preencher todos os requisitos do art. 215-A, não pode ser suficiente para caracterizar o crime de estupro ou estupro de vulnerável.

Daí, analisando-se o dispositivo que trata do estupro de vulnerável, verificamos que o codex assim o determina: “Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (cartorze) anos (…) §1º Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência”.

Portanto, resta claro que o legislador, ao conceituar o estupro de vulnerável, tornou dispensável a existência de violência ou grave ameaça, afinal, sabe-se que o cometimento de crimes sexuais contra crianças e/ou enfermos, geralmente, vêm acompanhada de carinhos para esconder as intenções vis do agente, ou uma ação sorrateira, afim de assegurar a impunidade, sendo comum que criminosos sexuais que cometam esse tipo de crime, inclusive, evitem as violências ou ameaças, para garantir que as crianças ou os enfermos não tenham plena noção da gravidade do ato cometido.

Em assim sendo, desnecessária a violência ou grave ameaça para a consumação do tipo penal do estupro de vulnerável, passamos à análise dos demais requisitos: 1. conjunção carnal ou ato libidinoso; 2. vítima menor de 14 anos ou sem capacidade de ofeecer resistência.

No caso de Branca de Neve, se assumirmos que Florian, apesar do falso pretexto de tentar salvar uma garota que viu apenas uma vez na vida, na verdade, deu um beijo na boca do suposto cadáver para a satisfação de sua lascívia, consequentemente, estaremos concluindo que a conduta por ele praticada se amolda em um “ato libidinoso”, que não chega a ser uma conjunção carnal, uma vez que não houve uma relação intersexual propriamente dita, mas, de alguma forma, satisfez os desejos sexuais do moço.

A seguir, conforme dito no início da análise jurídica, verifica-se que a jovem tinha 14 anos de idade, então, poderiam argumentar que “a lei fala que o crime tem que ser praticado com menores de 14 anos, e ela já tinha 14 e alguns dias”, o que não é de todo errado, contudo, a lei também diz que o crime cometido contra vítimas que, por enfermidade ou deficiência mental, não têm necessário discernimento para a prática do ato; ou o crime contra vítimas que, por qualquer outra causa, não podem oferecer resistência, são equiparados ao crime de estupro de vulnerável.

Em assim sendo, observando-se que Florian aproveitou-se do momento em que Branca de Neve, jovem de 14 anos, estava inconsciente, em razão da ingestão de veneno ministrado por sua madrasta, para cometer o ato de beijar-lhe, a fim de satisfação da própria lascívia, constata-se que o jovem adulto consumou a prática do tipo penal descrito no art. 217-A, §1º, do Código Penal Brasileiro.

(Snow White and the Seven Dwarfs, EUA, 1937, 83 min.)
Animação | Direção: David Hand, Wilfred Jackson, Ben Sharpsteen, Perce Pearce, Larry Morey, William Cottrell | Roteiro: Jacob Grimm, Wilhelm Grimm, Ted Sears, Richard Creedon, Otto Englander, Dick Rickard, Earl Hurd, Merrill De Maris

Ver “Branca de Neve e Os Sete Anões” na Disney+

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