Direito em Cenas: Clemência

Clemência é um longa de Chinonye Chukwu, que conta a história de Warden Bernadine (Alfre Woodard), a diretora de um presídio que inicia a trama acompanhando a execução de um jovem prisioneiro latino, Victor Jimenez, e se traumatiza devido aos erros médicos cometidos na execução do rapaz.

Após ver o prisioneiro morrer, não em razão da execução bem realizada, mas sim pela hemorragia ocasionada pela má execução do procedimento, Bernadine começa a ter claros problemas emocionais, gerados pelo trauma de acompanhar uma morte tão horrível.

O longa passa longe de uma análise aprofundada do sistema penitenciário, ou da pena de morte, sendo tão-somente o retrato da vida da diretora de presídio, como se buscasse trazer a visão dessa personagem ao mundo.

Contudo, é inegável que todos os traumas sofridos pela personagem, bem como todas as mudanças sofridas em suas emoções, sua personalidade, seu humor e seus relacionamentos são consequência direta da existência da pena de morte, e de sua aplicação.

Em assim sendo, verifica-se um segundo lado da história: os efeitos da pena de morte, não apenas no preso, em sua família, ou na sociedade como um todo, mas daqueles agentes estatais que são responsáveis por suas execuções, que, ao contrário do que tenta fazer parecer Warden, não se sentem tranquilos com seus trabalhos.

Tudo isso traz à tona, portanto, o necessário debate sobre a pena de morte, a qual é vedada no Brasil, desde a proclamação da República, em 1889, salvo em casos de crimes militares, cometidos durante a guerra.

A atual Constituição Federal dispõe expressamente em seu art. 5°, inciso XLVII, quw não haverá penas: de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; perpétuas; de trabalho forçado; de banimento; ou cruéis.

Contudo, na América do Norte, de maneira diferente, verifica-se que, apesar de o Canadá e o México terem banido a pena de morte, alguns estados dos Estados Unidos ainda a aplicam e, portanto, ceifam as vidas dos agentes delitivos (que, conforme previamente esclarecido em 13a Emenda, são majoritariamente negros, vítimas da opressão do racismo sistêmico).

Vale destacar que, apesar de ser prevista na maioria dos estados dos Estados Unidos – que, diferentemente do Brasil, não têm unicidade de normas penais para todos os estados e, portanto, permite que cada estado tenha seu próprio código penal -, não houve execuções de penas de mortes em todo o território dos EUA, entre 1967 e 1977.

Nesse hiato de homicídios estatais, em 1972, a Suprema Corte dos Estados Unidos derrubou os estatutos da pena de morte em Furman v. Georgia, reduzindo todas as sentenças de morte pendentes no momento em prisão perpétua.

Posteriormente, contudo, a maioria dos estados, com seu poder de autorregulação, aprovou novos estatutos de pena de morte, e a Suprema Corte afirmou a legalidade da pena de morte no caso de 1976 Gregg v. Georgia.

Até 2020, vinte e um estados e a capital federal, Washington, haviam abolido a pena de morte e, em fevereiro de 2020, o Colorado se tornou o vigésimo segundo estado dos Estados Unidos a abolir a pena de morte, depois que a Legislatura aprovou uma lei pondo fim à pena capital, a qual entrou em vigor em julho daquele ano.

Não é demais mencionar que, de acordo com a Anistia Internacional, hoje 58 países mantêm a pena de morte para crimes comuns, a saber: homicídios; espionagem; falsa profecia; estupro; adultério; homossexualidade; corrupção; tráfico de drogas; não seguir a religião oficial ou desrespeitar algum padrão de comportamento social ou cultural.

O ranking de execuções é encabeçado por China, Irã, Iraque, Arábia Saudita e Estados Unidos, que preveem como forma de aplicação da pena o apedrejamento, o fuzilamento, a cadeira elétrica ou a injeção letal.

O movimento de decréscimo do número de execuções nos Estados Unidos, contudo, revela que o sistema de aplicação das penas capitais está perdendo força, tanto no âmbito jurídico, quanto no âmbito social, uma vez que a própria aprovação de leis de abolição das penas capitais deriva da pressão popular para que as mesmas sejam extintas.

É evidente que a população, ao contrário do que se percebia nos anos 80 e 90, onde se comemoravam as execuções de condenados, está se tornando mais ciente e contrária à previsão da pena de morte, principalmente agora em que há um amplo movimento de reconhecimento do racismo estrutural, que determina a cor, a etnia e a classe social das pessoas a serem executadas.

Para além do reconhecimento desse fator racista, que enviesa a aplicação de penas capitais, há, ainda a evidente repulsa popular à injeção letal, hoje considerada por muitos uma forma cruel de execução da pena de morte (bem como retrata Clemência).

No debate criminológico, verifica-se ainda uma maioria de estudiosos dizendo que a aplicação da pena de morte não reduziu, em absoluto, a prática de crimes nos países em que é permitida, o que comprova que, para além de sua falta de humanidade, a pena de morte ainda é ineficaz.

É certo que existem indivíduos no Brasil, por exemplo, que são favoráveis à aplicação da pena de morte no País, e, inclusive, têm discursos rasos sobre como as prisões não seriam capazes de ressocializar quaisquer criminosos, portanto, “bandido bom é bandido morto”.

Ora, seguindo esse raciocínio, esse mesmo indivíduo, que defende tal discurso, se dirige embriagado, se bate em sua esposa, se deixa de declarar devidamente seus impostos de renda, se faz uso (recreativo) de substâncias ilícitas, deve, portanto, ser preso e, obviamente, morto pelo Estado, afinal, sua conduta não é menos criminosa pelo simples fato de ele ser a favor da pena de morte, não é mesmo?

E se, porventura, o crime por ele praticado for menos grave, como apenas um furto, ele deve ser condenado e também executado, uma vez que “não é papel do Estado educar criminoso”, correto?

Fazendo tais questionamentos aos ditos “pró-pena de morte” é que vemos a máscara de seu moralismo caindo, e sua capacidade argumentativa se esvaindo.

Vez ou outra, um deles pode ser capaz de questionar: “você não pensa nas vítimas?” e daí compete retrucar com a seguinte questão: “e você acha que ceifar a vida de mais uma pessoa vai fazer uma vítima a menos ou a mais na sociedade?”.

Evidencia-se que os discursos favoráveis à pena de morte, portanto, são vazios, rasos de argumentos, porém cheios de ódio, fundados em homofobia, transfobia, racismo e misoginia.

Esses discursos, ainda, costumam provir de sujeitos sem um pingo de empatia para/com a vida alheia, que incorrem em mais crimes, ao longo de suas vidas, do que vários presos do sistema penal brasileiro, mas, ainda assim, arrotam serem “pró-vida”, para criminalizar o aborto e “pró-pena de morte”, para assassinar indivíduos, não como eles, do alto de suas impunidades, mas vítimas do racismo estrutural, que encarecera centenas de jovens negros por ano.

Ver “Clemência” no Telecine

Direito em Cenas

(Clemency, EUA, 2019, 112 min.)
Drama | Direção: Chinonye Chukwu | Roteiro: Chinonye Chukwu| Elenco: Alfre Woodard, Richard Schiff, Danielle Brooks, Michael O’Neill, Richard Gunn, Wendell Pierce, Aldis Hodge

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