Drama
Direção: Olivier Abbou
Elenco: Adama Niane, Stéphane Caillard, Paul Hamy, Eddy Leduc, Hubert Delattre, Leila Amara, Coline Beal, Carine Bouquillon, Marie Bourin, Christopher Fataki, Charlotte Geiger, François Godart, Jacques Herlin
Roteiro: Olivier Abbou, Aurélien Molas
Duração: 97 min.
Nota: 8
Sabem aqueles filmes que trucidam nossos nervos aos poucos, primeiro pela forma como os elementos se posicionam ante os acontecimentos, para só a partir daí inserir os elementos ditos de gênero, para impulsionar o estado de tensão? Como as questões sociais são força motriz para o desenvolvimento narrativo, Estranhos em Casa não pode ser pensado ou analisado como uma única coisa independente. Sua construção de suspense advém da manutenção de todos esses elementos, os típicos da categoria e aqueles que só fazem sentido exatamente nesse contexto. Para isso, Paul precisa ser mostrado como um homem pacato à beira de gerar incômodo; a desconstrução do que entende como universo virá da união entre o que é causado a ele com o que não é de sua alçada, ou direcionado para si.
Como filme francês, o casal interracial central não causa espanto, muito menos que essa união desencadeie por si só alguns dos elementos de conflito, desde muito o início, quando, com 5 minutos, Paul é algemado ao tentar entrar na própria casa. Então o casal sai de um breve idílio de férias para uma acusação de invasão na própria casa, roubada sem escrúpulos pela própria babá, que forja uma propriedade que nunca existiu. Isto é causado porque Paul é desacreditado a todo momento por ser negro. Mesmo bem sucedido, ensinando História, com uma bela esposa e residência, sua cor de pele o torna insuficiente perante a sociedade mesmo que nada o diminua.
Paul declara em determinado momento, depois de ser inúmeras vezes atacado por sua postura: “eu fiz o que todos queriam, fui bom pai, bom marido, bom profissional”, e com isso assume ter vestido a pecha de “negro domesticado” que ouve em certa cena. Na verdade, o enfrentamento não era de sua natureza, e o filme mostra um dos alunos de Paul vestindo essa carapuça social algumas vezes, tanto para traçar um parâmetro em relação a suas diferenças quanto para observar sua atitude diante de atos de violência – resguardado, Paul se ausenta. Sam Peckinpah trata disso em Sob o Domínio do Medo de 1971, onde Dustin Hoffman é colocado numa espiral de crescente violência que se aproxima de sua família, sendo ele um homem pacato; as molas se assemelham.
O diretor e roteirista Oliver Abbou não tenta inventar um conceito inexistente. Partindo de eventos reais e embaralhando algumas ideias já apresentadas em diferentes narrativas. Despretensiosamente Estranhos em Casa, (no original, Furie – com todo seu simbolismo explícito) deflagra uma discussão sobre pertencimento na sociedade capitalista e raízes ancestrais do racismo que infelizmente são evidentes ainda hoje na França. À força de suas imagens e sua equipe técnica invejável criam um espetáculo de crescente horror e desespero, levando o filme a um estágio superior às suas questões que já tantas vezes foram debatidas – é o Cinema que sempre deve potencializar o discurso, e não o contrário.
O trabalho fotográfico de Laurent Tangy, por exemplo. Responsável por A Conexão Francesa, sua parceria com Abbou é preciosa para as camadas que o filme fornece ao espectador gradativamente; indo da placidez inicial, passando por uma cena capital toda captada pelo interior de um veículo na chuva até desembocar no mergulho à selvageria em tons de vermelho e azul crescentes, Tangy consegue traduzir em sua luz o contraponto entre dois Pauls – o homem em si e seu lado primitivo, a cada vez que captura seu rosto. Amparados pela febril edição de Benjamin Favreul que transforma o encontro de Paul com uma vampira em um pesadelo surrealista, o filme se sofistica e equaliza suas qualidades num trabalho conjunto de potência inegável.
Estranhos em Casa ainda enfileira um manancial subtextual de impressionante utilização, como quando ao final transforma os assassinos de porcos em porcos assassinos, ressignificando símbolos de decadência diante da crise econômica que o próprio filme desenha. Como se fossem dois mundos em ruínas prestes a colidir, o Branco em queda de hoje não se permite aceitar o Negro do lado superior da gangorra, e ataca como uma matilha. Da burocracia estatal à bestialidade humana, todos parecem em uníssono dispostos a desvalorizar quem está em posição de destaque, se o outro em questão não corresponde ao que você entende como merecedor. Algumas máscaras são arrancadas por Abbou, mas outras são colocadas – só assim podemos fazer as limpezas étnicas que nos convém há tantas gerações, não é mesmo?
Um Grande Momento:
O reflexo na estátua, e o destino da mesma.