Talvez nunca anteriormente os valores e as intenções de Kelly Reichardt tenham sido tão explicitadas quanto em First Cow. A sede pelo encontro, a vontade do outro, de estar juntos, de encontrar um refúgio emocional quando lhe falta o físico, quando esvoaça o prático. O Encontro, afinal… e não algo vazio e inconsequente. Kelly está interessada nesse transporte, do gráfico pro físico, na interiorização do que acontece no ambiente externo se transformar em ebulição interna, e daí nascer essa inquietação que promove uma espécie de união entre polos geralmente opostos, que se amalgamam em torno de um sentimento inesperado de conexão.
Com uma interconexão a estabelecer com sua obra, uma das protagonistas de Certas Mulheres, Lily Gladstone, faz rápida participação abrindo um prólogo que caminha todo o longa como uma força espiritual para o qual o filme é atraído. Sua autora encontrou no romance de Jonathan Raymond (que adaptou o roteiro junto com ela) a inspiração para continuar essa pulsão de vida que valida seu trabalho, a torna relevante e coloca na conta do incompreensível a pouca reverberação que o mesmo alcança. O cinema de Kelly tem raiz em uma classe de humanismo que reivindica pra si tudo ao seu redor, assimilando espaços naturais como parte integrante desse grande encontro cósmico.
O filme se embrenha não apenas nas florestas do Oregon, mas principalmente nos alicerces que Cookie e King-Lu fincam naquele arremedo de sociedade, sobrevivente dos costumes e das aparências vigentes e absolutamente refém das convenções,que vão sendo pouco a pouco reveladas, dissecadas sutilmente e colocadas na berlinda quando forasteiros pretendem também realizar o “sonho americano”; não seria ele para todos, ou somente para poucos selecionados? O quinhão de esperança é distribuído a todos, mas a própria sociedade se encarrega de fazer a triagem e decidir quem tem ou não tem direito ao sonho.
Não deixa de ser irônico que o bem sobre o qual a dupla tenta se apossar seja algo tão natural quanto diminuído por quem possui. Sem precisar tomar algo que não seja naturalmente reposto e reintroduzido, os protagonistas do filme usufruem de um misto de inocência e destreza para galgar um microscópico lugar no mundo. First Cow insere os estrangeiros em uma sociedade que não tem interesse em abarcar suas capacidades, apenas usá-los para posteriormente jogar fora — o Homem tira proveito do que não entende, para só então descartá-los. Como uma parábola antiga, o filme apresenta seus elementos para a criação de uma moral, ainda que essa seja das mais infames. Esse lugar agridoce é onde também se insere o cinema de Kelly.
Paralela à questões de inserção social sistematicamente negadas ao longo dos tempos,Cookie e King-Lu iniciam uma relação construída nas entrelinhas da amizade, da necessidade e do conforto, que se descortina de maneira tão delicada quanto íntima. A cena onde a narrativa demarca suas posições dentro de seu microcosmos, cada um com uma tarefa a cumprir, um lugar previamente estabelecido que é corrompido pelo jogo imagético, é um mostruário de que Kelly não pretende responder perguntas óbvias ou calcula entregar soluções fáceis; o afeto nasce dos lugares mais inóspitos, sob influências das mais diversas, incluindo às da adversidade.
Com a ajuda da lente espetacular de Christopher Blauvelt (de Emma.), Kelly cria um paralelo entre toda sua obra, mas especificamente uma leitura que empreende entre Meek’s Cutoff e esse último filme, saindo de um universo hostil para mulheres para uma hostilidade direcionada enfim ao exterior, denunciando em First Cow a natureza xenofóbica e exclusivista da América desde os seus primórdios, com um preciosismo raro a cineasta americanos. O abraço final de seu filme tem tarefa contraditória, mostrar que minorias muitas vezes não têm outra mão que não a de seus pares, e estabelecer um laço indissociável entre seres desgarrados de todo o resto. Há liberdade, enfim, a partir do encontro.
Um grande momento
O abraço
[International Film Festival Rotterdam 2021]
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