- Gênero: Comédia, Musical, Fantasia
- Direção: João Pedro Rodrigues
- Roteiro: João Pedro Rodrigues, João Rui Guerra da Mata, Paulo Lopes Graça
- Elenco: Mauro Costa, André Cabral, Joel Branco, Oceano Cruz, Margarida Vila-Nova, Miguel Loureiro, Raquel Rocha Vieira, Anabela Moreira, Cláudia Jardim
- Duração: 66 minutos
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No dicionário, fogo-fátuo: luz que aparece à noite, emanada de terrenos pantanosos, que é atribuída à combustão de gases provenientes da decomposição de matérias orgânicas. No sentido figurado, falso brilho, glória passageira. Esse é o significado que perpassa a curta duração de Fogo-Fátuo, a nova obra de João Pedro Rodrigues, duração inversamente proporcional à qualidade. No sentido de tudo ser transitório na vida – o amor, o poder, o frenesi, o tesão, etc – o cineasta consegue aqui um raro estado de excitação coletiva e positiva para um obra sua, ainda que a melancolia esteja perpassada em cena. Acima dela, no entanto, está o afã de realizar os mais despirocados desejos, a aceitação e a luta em ser o que se pode ser, paralelo ao que a História lhe legará.
E sim, Rodrigues não foge ao compromisso histórico que já estabelece no primeiro plano – um moribundo real jaz aos pés de um quadro de grandes proporções, figuras da realeza circundadas pela plebe pequenina, menores como súditos que são. Todos negros. Tendo colonizado inúmeros países africanos, equivalente aos escravos que fez, Portugal vive em uma luta ancestral entre a república e a monarquia, obedecendo a padrões contraditórios. Fogo-Fátuo observa esse binômio com a verve da picardia, e armando o terreno para um breve ataque contra o que entendemos como status quo. Quando a observação acaba, e o príncipe herdeiro anuncia suas intenções à família real, o filme deslancha rumo a uma catarse de estranheza sedutora, que conjura classificações cinematográficas, História da Arte, política externa e interna, convenções de gênero e o que mais estiver pelo caminho.
Estranheza porque o filme mistura elementos de gêneros distintos e dispersa assim qualquer expectativa de placidez narrativa. Rodrigues nunca foi adepto de cabresto cinematográfico e não seria agora; assim sendo, há uma exigência para que tudo visto em Fogo-Fátuo seja absorvido como possível. E naquele cenário o é, afinal estamos diante de um rei atuante que canta os benefícios da amizade e do ecossistema – quer algo menos real (com duplo sentido) que isso? O diretor de O Ornitólogo nos leva a essa viagem que parece delirante na forma, mas que costumeiramente está nos induzindo ao que compõe seu quadro de interpretação normativa; também a norma, no caso de um realizador com a textura de Rodrigues, é subjetiva.
Quando o príncipe em questão, Dom Alfredo, pede por uma chance de servir ao país como bombeiro e se envolve além do permitido com as forças de segurança, Fogo-Fátuo não está, de maneira alguma, acenando a um entendimento monárquico ante suas responsabilidades. A ideia é mais profunda, ao entrecruzar corpos privilegiados a subjugados, nações dominantes a outras em condições de dominação, e a representatividade de corpos, etnias, cor de pele, mais especificamente falando. A cena musical mais evidente da produção une em um mesmo corpo de baile homens e mulheres, pretos e brancos, corpos de padronagens distintas, em uma coreografia que não se pretende visualmente exemplar, mas que entende o grau de beleza estética nessa decisão para além do componente fílmico – e com isso exatamente contribuir para esse exato componente.
Essa é a vocação de seu realizador, nunca ser específico em sua área, mas tratou com amplitude cada obra a que se deteve. Ao comungar sobre uma ideia de ressurreição de monarquia, ainda que de maneira concentrada, seu intuito é uma tentativa de reparar historicamente o tanto de errado que foi cometido. Com a inteligência de quem sabe não ser possível, a saída é o delírio tresloucado que Fogo-Fátuo representa, que nos permite amalgamar ideias de ideologia de quem as promulga, uma massa pulsante de variadas conexões que não deveriam se comunicar, mas o faz. Sob os olhos de Rodrigues, um jovem monarca alvíssimo vai sim debater territorialismo, ações escravocratas e crimes históricos antes e depois de cair de boca em seu amante negro.
Essa jornada múltipla de provocações, reconstruções, divagações e – digamos – erupções, não é uma novidade para o cineasta de Fantasma. O que talvez seja, ao menos da maneira tão deliberada com que trata seus códigos, é a forma como a comicidade enfim está inserida nesse painel, prestes a explodir a todo momento. Não é o estranhamento que provoca essa reação, como poderia se imaginar, mas é uma busca proposital por um olhar de leveza que explode em tratamento cômico. Um deboche autoconsciente do que representa ideias falidas de governo, de normatividade ou de tratamento racional. Como se entendesse que a última mola a precisar de molde é a que desconstrói o mundo, Rodrigues reinventa na própria filmografia mais uma ideia de libertação, ao agregar a comédia como maneira de ressignificar códigos arcaicos.
A anarquia não está presente apenas na forma como os signos são distribuídos, ou no que suas ideias representam para a sociedade de facto, aquela não condicionada em sua estrutura, mas principalmente no que isso representa para o ‘modus operandi’ em voga. O cinema português, sozinho, vem travando uma pequena revolução de linguagem nos conceitos que temos de cinema, dentro o que é vigente. Que um festival que se julga ousado mas que ano a ano só apresente diferentes formas de tradicionalismo como Cannes ainda o ignore, é um sintoma do lugar certo onde Rodrigues e cia. se inserem hoje. Fogo-Fátuo é um olhar humilde para esse setor, que pretende com inteligência e inovação, reconfigurar a História, atual e pregressa, onde o Cinema pode fazer – olhar para a tela e encontrar, enfim, uma reparação que não surgirá de outro lugar, que não do Artista.
Um grande momento
O diálogo pós-sexo, na caminhoneta