Grandes Olhos é um longa de Tim Burton que conta a história real de Margaret Keane, uma artista plástica atualmente reconhecida mundialmente, mas que teve o ápice de seu sucesso nos anos 50, quando, além de pintar suas obras, ainda passou por abusos psicológicos e uma batalha judicial contra seu marido, Walter Keane.
O diretor, Tim Burton é fã de Margaret, o que é facilmente percebido por seus personagens de olhos grandes em O Estranho Mundo de Jack, A Noiva Cadáver, Frankenweenie e, até, Marte Ataca!. Ele conseguiu atribuir maior fama à história de Margaret ao dirigir o filme protagonizado por Amy Adams (como Margaret Keane) e Christoph Waltz (Walter Keane). Apesar de terem sido adicionadas pitadas de humor ao longa, até para que o telespectador não ficasse sobrecarregado com a tensa história de vida da artista plástica, a verdade é que Margaret Keane sofreu maus bocados antes de ter reconhecimento pelo seu trabalho e apoio para se afastar do marido abusivo.
Olhos Grandes se passa nos anos 50, quando, na vida real, Margaret atingiu um sucesso fenomenal com suas incríveis e diferenciadas obras de pessoas e animais com olhos enormes. Porém, com medo de não conseguir vendê-las, concordou que o marido as assinaria, para garantir um dinheiro com a arte. Vale destacar que o machismo dos anos 50 nos Estados Unidos não se diferencia muito daquele vivido na mesma época no Brasil: as mulheres não eram consideradas sujeitos de direito e, portanto, eram sempre tratadas como incompetentes para qualquer trabalho que não fosse doméstico e discriminadas nas rodas de conversas, majoritariamente compostas por homens brancos.
Exatamente por esse contexto social imposto pelo patriarcado, Margaret se viu compelida a aceitar a proposta de Walter Keane e deixá-lo assinar suas obras para que as mesmas não fossem descartadas pelo simples fato de terem sido produzidas por uma mulher e, consequentemente, garantir alguma renda. Após quase uma década assinando as obras da esposa, Walter se tornou ambicioso, vaidoso e agressivo, conforme retratado no filme, impôs que Margaret passasse horas a fio produzindo novas obras e passou a receber repórteres em casa para posar para fotos ao lado de “suas” obras, enquanto deixava esposa de lado, posando com outros quadros, que não tinham a assinatura dos grande olhos.
Após uma década de violação de sua integridade moral e de sua propriedade intelectual, Margaret, finalmente, conseguiu se divorciar de Walter e, posteriormente, reivindicou a autoria das obras, o que, contudo, demorou para ser reconhecido, já que, inicialmente, foi marcada uma “pintura-out” no San Francisco Union Square, organizada pelo repórter Bill Flang, do San Francisco Examiner, mas somente a imprensa e Margaret compareceram. A seguir, apesar das denúncias feitas pela própria artista acerca da violação de seus direitos autorais, em 1986, o jornal USA Today publicou um artigo em que reafirmava a autoria de Walter nas obras de grandes olhos e, portanto, Margaret ajuizou uma ação contra o jornal e seu ex-marido, afirmando ser autora das obras.
O julgamento desse processo foi retratado por Tim Burton com certo excesso de humor, na clara tentativa de expor e constranger – ainda mais do que a própria história é capaz de fazer – o ex-marido de Margaret, retratando-o como um verdadeiro palhaço diante da Corte. Na vida real, aconteceu de forma similar à retratada no filme: para o deslinde do feito, o juiz do Tribunal Federal onde corria o processo determinou que tanto Margaret quanto Walter criassem uma pintura de grandes olhos na sala do tribunal, diante do juiz, dos jurados e da imprensa presentes no momento. Walter se recusou, citando uma dor no ombro, enquanto Margaret completou sua pintura em menos de uma hora, razão pela qual o veredicto foi para condenar o ex-marido por difamação e à indenização de 4 milhões de dólares, por danos causados à artista plástica.
Analisando-se a história sob a luz do direito brasileiro atualmente vigente, o que se pode constatar é a clara violação dos direitos autorais de Margaret, na medida em que ela e o marido concordaram que ele assinasse as obras, para assegurar a venda das mesmas, mas depois ele se recusou a repassar os lucros à esposa ou sequer a identificá-la como real autora das pinturas. Os direitos autorais, no Brasil, são assegurados pelo art. 5º, inciso XXVII da Constituição Federal, que dispõe que os autores detém direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras – sendo este direito transmissível aos herdeiros, no tempo previsto em lei.
Em mesmo sentido, o art. 5º, inciso XXVIII assegura, ainda, a proteção às participações individuais em obras coletivas e o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores. Isto é, já de pronto a Constituição Federal diz que, caso ocorresse situação similar à de Margaret no Brasil, ainda que ela tivesse se valido da assinatura do marido para vender as obras, por ser a real autora das mesmas, teria direito exclusivo de utilização, publicação e reprodução de suas obras e, igualmente, teria direito de fiscalizar o aproveitamento econômico das mesmas.
Para além das previsões constitucionais, o ordenamento jurídico pátrio ainda dispõe da Lei 9.610, de 1998, que consolida a legislação sobre direitos autorais, conceituando “publicação”, “transmissão ou emissão”, “retransmissão”, “distribuição”, “comunicação ao público” e “reprodução” para garantir que os autores tenham conhecimento prévio e dêem autorização para a divulgação de suas obras. Além disso, diz a lei que uma obra pode ser tanto em co-autoria, quanto anônima, pseudônima, inédita, póstuma, originária, derivada, coletiva ou audiovisual e, de qualquer forma, se expressa por qualquer meio ou fixada em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, a autoria da mesma deve ser devidamente protegida.
A reprodução não autorizada de uma obra consiste no que a lei denomina de contrafação e a proteção dos direitos autorais garantidos pela lei e pela Constituição Federal independe de qualquer registro, sendo apenas uma faculdade do autor registrar sua obra no órgão público competente ou não. Destaca-se, ainda, que, por força da lei 9.610 são garantidos os direitos morais do autor, isto é:
Direito de reivindicar, a qualquer tempo, a autoria da obra; direito de ter seu nome, pseudônimo ou sinal convencional indicado ou anunciado, como sendo o do autor, na utilização de sua obra; direito de conservar a obra inédita; direito de assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra; direito de modificar a obra, antes ou depois de utilizada; direito de retirar de circulação a obra ou de suspender qualquer forma de utilização já autorizada, quando a circulação ou utilização implicarem afronta à sua reputação e imagem; e direito de ter acesso a exemplar único e raro da obra, quando se encontre legitimamente em poder de outrem, para o fim de, por meio de processo fotográfico ou assemelhado, ou audiovisual, preservar sua memória, de forma que cause o menor inconveniente possível a seu detentor, que, em todo caso, será indenizado de qualquer dano ou prejuízo que lhe seja causado.
Igualmente, são assegurados os direitos patrimoniais ao autor, o que implica dizer que cabe a ele o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor da obra literária, artística ou científica e, concomitantemente, a utilização da obra, por quaisquer modalidades, depende da autorização prévia e expressa do autor.
Aplicando-se ao caso de Margaret, portanto, a legislação pátria reconheceria que, em que pese as obras não terem sido registadas, os direitos autorais de Margaret fossem reconhecidos e protegidos e, igualmente, sua autoria fosse reconhecida, uma vez que a lei prevê o direito de reivindicar a qualquer tempo a autoria. A violação de direitos autorais no Brasil é crime, prescrito no art. 184 do Código Penal e tem como pena a detenção de 3 meses a 1 ano, ou multa e, quando a intenção da violação é a de obtenção lucros, diretos ou indiretos, a pena aumenta para a reclusão de 2 a 4 anos, e multa. As sanções, porém, não se limitam à esfera penal.
Por se tratar de violação de direitos morais e patrimoniais, conforme prescrito na lei 9.610, ainda é reconhecida tal violação como um ilícito civil, segundo o Código Civil, que diz que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. Portanto, Walter, além de poder ser submetido às sanções penais, poderia ainda ser condenado à reparação dos danos morais causados a Margaret, por meio da fixação de uma indenização, na esfera cível.
(Big Eyes, EUA/CAN, 2014, 106 min.)
Drama | Direção: Tim Burton | Roteiro: Scott Alexander, Larry Karaszewski | Elenco: Amy Adams, Christoph Waltz, Danny Huston, Krysten Ritter, Jason Schwartzman, Terence Stamp, Jon Polito, Delaney Raye, Madeleine Arthur, James Saito, Farryn VanHumbeck
Veja “Grandes Olhos” na Globoplay