- Gênero: Animação
- Direção: Joaquim Dos Santos, Kemp Powers, Justin K. Thompson
- Roteiro: Phil Lord, Christopher Miller, Dave Callahan
- Duração: 140 minutos
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Sem lugar de fala ao seu tema central específico, saio de Homem-Aranha Através do Aranhaverso compreendendo o tanto de vezes que pessoas negras (ou mulheres, ou LGBTQIAP+, ou povos originários, ou PCDs, etc) ouviram que estavam no lugar errado, na hora errada, e o que aconteceu de extraordinário a elas foi acidental, ou injusto. Essas falas, e esses conceitos pré-estabelecidos, geralmente são disparados por interlocutores brancos, e servem para sempre diminuir a participação ou os méritos de seus feitos. Acho no mínimo propício que essa discussão esteja inserida em meio a um dos maiores blockbusters da temporada, e que Miles Morales seja mais uma vez um reflexo social que assinala um racismo que por vezes é estrutural, e por outras é bem focado e explícito.
A essa altura, tudo o que foi revolucionado em Homem-Aranha no Aranhaverso, é de conhecimento geral. Sim, é o melhor filme com o personagem (e sim, temos sete outras produções live action); sim, é uma das melhores animações dos últimos 10 anos; sim, esteticamente poucos títulos conseguiram ser mais inovadores no gênero. Mais uma vez, os produtores e roteiristas Phil Lord e Christopher Miller elevam as expectativas só para poder batê-las com mais um visual acachapante, com truques visuais ainda mais desconcertantes, e um trabalho de construção de ideias que talvez supere o anterior. Mas, assim como no primeiro, Homem-Aranha Através do Aranhaverso funciona principalmente pelo que tem a contar, pela forma como o faz e pelos lugares que alcança socialmente, e por reconfigurar o conceito de multiverso para fins particulares. Embora isso não empalideça diante do todo, o complemento de um a outro acaba fazendo a motivação narrativa se sobressair, em determinados momentos, e é nossa relação com o arco dos protagonistas que elevam a obra.
Ainda que existam espaços de poder geridos por mulheres e especificamente por uma mulher preta (e sabemos que é a mulher preta o ser mais rebaixado do mercado), o que acontece com Miles Morales em determinada cena é uma leitura exata do “lugar que você não merece estar, a não por acaso ou sorte”. E quando enfim retorna a um multiverso especialmente reconhecível, Miles percebe que tudo pode mudar ao seu redor, o que não muda são as possibilidades das quais ele terá de tomar para receber. É uma leitura talvez radical, mas que cabe em um material questionador como Homem-Aranha Através do Aranhaverso, que não utiliza de seu poder aglutinador apenas para fornecer espetáculo, mas também para cooptar linhas de discussão.
O rebuscamento da imagem, que remete de imediato tanto ao movimento das grandes cidades de ascensão das vozes periféricas quanto de uma modernização do próprio conceito de animação enquanto gênero, continua presente e aqui abre espaço para ainda outros olhares dentro do campo. Se há menos espaço narrativo para a multiplicidade dos universos, há aqui um entendimento de que o roteiro precisa centralizar seus esforços para encontrar uma verdade que não seja coletiva, mas exatamente particular dentro dessa coletividade. Miles não é um foco único, mas também Gwen Stacy está no centro do que é contado, assim como Miguel O’Hara, cada um puxando uma identidade de pesquisa. São campos complementares de análise do que está sendo narrado, por quais corpos e quais vivências, de que lugares vem as problematizações de cada desdobramento. Temos, no entanto, ao menos dois destaques que sentimos falta ao não estarem em foco, o Aranha indiano e seu multiverso, e o Punk Aranha – criações que extrapolam suas ideias possíveis para o infinito.
É quando então entra em cena uma Central Aranha, onde infinitas espécies do herói de multiversos diferentes se encontram em um local de acerto de contas geral. Funciona como uma corregedoria universal, mas ainda também como um espaço onde as coisas voltam aos seus devidos lugares. Na cacofonia visual que faz parte de Homem-Aranha Através do Aranhaverso, esse ambiente equaliza vibrações, imagens e ideias. É uma espécie de espaço permitido a exploração máxima de possibilidades, onde tanto um Aranha punk-rock quanto uma futura heroína ainda bebê são igualmente possíveis e igualmente fantásticas. Como se tudo o apresentado até então já não fosse de um fascínio raras vezes visto, adentrar esse caleidoscópio de sensações reveste o espectador de uma miríade de sensações, e fica difícil sair do filme com muito mais perguntas e desejos e anseios do que ao entrar.
Como já dito, a despeito da quantidade exasperante de beleza e excitação gráfica, é a saga de Miles Morales a motivadora de todo nosso interesse pela trilogia (vem um Além do Aranhaverso em março, já conhecido pelos fãs e que decepa pela metade o roteiro aqui). Com isso em mente, Homem-Aranha Através do Aranhaverso compreende os grandes poderes e as grandes responsabilidades de uma maneira ainda mais trágica, porque o herói aqui tem a juventude necessária para questionar tudo, e a sapiência antecipada para anarquizar o ‘status quo’. Não tem apenas a ver com manter ou não a ordem esperada das coisas, mas com aceitá-las como se a dor não viesse com elas… e quem quer sentir dor, ou entender sua chegada e abraçá-la? Aqui, o protagonista tem a chance que todos nós gostaríamos de encarar o destino e dizer NÃO.
O único problema de Homem-Aranha Através do Aranhaverso continua sendo um “problema do bem”: são tantos elementos repletos de camadas, tantas possibilidades cheias de maravilhamento, são tantos caminhos a explorar, que mesmo entendendo o foco na trajetória de Morales, não deixa de ser uma pena não acompanhar quanto multiversos forem possíveis.
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