Crítica | Streaming e VoD

Master

Em todo lugar, sempre

(Master, EUA, 2022)
Nota  
  • Gênero: Terror
  • Direção: Mariama Diallo
  • Roteiro: Mariama Diallo
  • Elenco: Regina Hall, Zoe Renee, Julia Nightingale, Talia Ryder, Ella Hunt, Noa Fisher, Anna Van Patten
  • Duração: 98 minutos

Quando Mariama Diallo nos leva a uma tradicional faculdade da Nova Inglaterra faz questão de destacar que parte do todo. Em seu mergulho rumo a um ponto vermelho, deixa evidente que está partindo de algo que não tem limites e que pode ser encontrado em qualquer lugar. Assim conhecemos Gail Bishop, mestre que acaba de chegar ao portentoso e antigo local. Ao mesmo tempo, a cineasta faz um outro movimento, de dentro para fora, se afastando da aglomeração colorida de estudantes adolescentes, para mostrar uma realidade de predominância e exclusão secular, e apresenta a estudante Jasmine Moore, em seu primeiro dia no lugar, prestes a conhecer seu dormitório. Nesse jogo de aproximação e afastamento, com portas que se recusam a abrir e se fecham sozinhas, manchas no piso e no teto, e outros elementos sinistros, vai construindo o clima de tensão e terror que faz parte do nosso cotidiano e marca nossa sociedade.

Master parte do cotidiano para falar de racismo, mas busca traços sobrenaturais para estabelecer sua trama e encontrar-se com a temporalidade da dor, as assombrações do preconceito que hoje se refletem naquelas duas mulheres, ainda que em movimentos diferentes. Pontuando o filme com situações que se repetem na vida das pessoas negras, como ser vista como aquela que vai limpar o que está sujo, ser chamada pelo nome de ícones pop ou ter a mochila revistada na biblioteca, o longa busca uma antiga lenda do local, a da bruxa Margaret Millet, que morreu enforcada e regressa todo ano ao local para fazer mais uma vítima. Assinando também o roteiro, Diallo vai alternando entre humano e sobrenatural, palpável e imaginário. Ora assombra com o desprezo às palavras e à presença de Moore, ora com os pesadelos da menina ou as imagens que se sucedem ao tilintar dos sinos na casa de Bishop.

Master ainda trata o racismo como um fungo que se alastra rapidamente, e se é muito evidente em algumas áreas, em outras está disfarçado por trás de papéis de paredes ou mesmo tornou-se invisível, matando muito sem ser visto. A branquitude impera no lugar, sem vergonha nenhuma de sua falta de consciência de privilégio, e por vezes até orgulhosa de seu ódio. O que já há de estrutural por trás disso também está dado, reforçando lugares de exclusão e restrição que não poderiam ser mais evidentes. E se já há uma distribuição óbvia desses papéis, mas que nunca pode ser acusada de forçada, pois assim é a vida, a direção de fotografia de Charlotte Hornsby tem uma função importante no destaque, reforçando constrangimento e a aflição. Aliás, ela tem um papel muito importante em toda essa manipulação de sentimentos nas trilhas que o filme toma.

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Porque, ainda que saia do macro ao micro para falar do racismo e opte por uma possibilidade de alegoria metafísica, não há como restringir caminhos. Sempre se estará falando de um presente de dor atravessado por um passado de ainda mais dor, ali e em tantos outros lugares do mundo, e isso é vasto e perpassado por questões múltiplas, que se chocam e se complementam no horror e na tragédia. Aquelas duas mulheres negras, em suas experiências, veem suas vidas se juntarem por conta de uma terceira, a professora Liv Beckman, que está em um lugar de improbabilidade e que foge a qualquer possibilidade imaterial. De tudo que há de humano e terrível por trás dessa configuração descoberta, o espectador, e falo mais por mim do que por qualquer outro, sente aqui um desconforto ainda maior.

Longe e perto da interessante alegoria fantasmagórica que revive as perseguições do passado, Master personaliza o presente com a apropriação de discursos e vidas que perpetua o mal. Em uma transfiguração complexa do terror, que parte da ortodoxia e se encontra no lugar de opressor para sentir-se pertencente, traça paralelos improváveis, mas não fala sobre nada que não se possa validar em qualquer lugar próximo. O mais assustador de tudo é justamente que, por mais absurda que sua história pareça, tudo o que está por trás dela, ainda que sem os mesmos desdobramentos fantasiosos e indumentárias, está acontecendo agora em algum lugar.

Cinematograficamente, há uma quebra entre esses dois universos, um desequilíbrio, até mesmo pela abordagem de gêneros, mas o longa se sustenta e, no conjunto, segue forte. Regina Hall se sai bem como uma personagem que precisa alternar entre a força e a fragilidade, o medo e a coragem e ser aquela quem conduzirá o espectador por boa parte dessa trilha sinistra. Mesmo dizendo o já sabido, há muita coisa dela que ficará com a gente depois do longo, como na conversa no hospital de sua personagem com Jasmine, vivida por Zoe Renee, também muito bem. Um filme que cativa por todo o cuidado estético, por sua ousadia ao traçar linhas complexas que poderiam se chocar em questões outras, mas perturbam exatamente como desejado. Para ver e ficar pensando, no todo, no específico, no do lado e na gente mesmo. 

Um grande momento
O passado presente na festa

[SXSW 2022]

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Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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