Mostra de Tiradentes

Grace Passô: Uma força da natureza

Grace Passô, atriz, dramaturga, mulher, negra, e a personificação do tema principal da 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes: “Corpos adiante”. Uma mulher que empresta seu corpo para criar tantos outros, que dá sua vida para constituir outras vidas, sua realidade para tornar a ficção real.

Com longa trajetória no teatro, onde escreveu e encenou peças premiadas, Passô ainda dá os seus primeiros passos no cinema, mas a maestria com que executa sua arte fez com que mesmo o seu começo já estivesse em um outro lugar de comparação. Ela é como alguém que já chega transformando os lugares por onde passa, atraindo as atenções e deixando a sua marca. Do teatro para o cinema, no teatro e no cinema. Um corpo que se faz presente e para o qual se quer olhar para além do presente.

Continuando as homenagens à artista na Mostra de Tiradentes, ela esteve presente hoje (19) no seminário “A presença de Grace Passô”, acompanhada da historiadora Natália Batista, da gestora cultural Aline Vila Real, e do diretor de cinema André Novais Oliveira. O encontro foi mediado pelo curador Pedro Maciel Guimarães.

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Do seu trabalho como atriz e dramaturga destaca-se a relação com a temporalidade. A obra de Grace Passô traz em si a urgência do presente, mas se conecta com o passado, em busca de referências. Para a historiadora Natália Batista, a atriz é alguém que constrói um presente que está sempre buscando o futuro agora e que encontra ecos no passado. Além disso há toda uma preocupação em trabalhar com a interpessoalidade e a individualidade, a transformação de desejos individuais que, ao mesmo tempo, são os desejos do coletivo.

Sua trajetória pelo teatro, lembrada por Aline Vila Real, é a constatação de dedicação transformada em sucesso. Da premiada peça, Vaga Carne, que virou um média-metragem dirigido pela atriz em parceria com Ricardo Alves Jr. e abriu a mostra, até sua estreia como dramaturga em Por Elise, passando por outros de destaque como Amores Surdos e Contrações, este por ela dirigido.

Ao iniciar seu trabalho como dramaturga, Passô foi movida pela vontade de encontrar novas histórias. Ela conta que a consciência da função não foi algo imediato, que demorou muito tempo para usar palavra dramaturga. “Quando se está envolvida com a cena, com o fazer teatro e, ao mesmo tempo, escrever, demora para perceber que você é uma dramaturga”, afirma. Segundo ela, essa conscientização foi algo que chegou de fora para dentro, mais pelas outras pessoas do que por ela mesmo.

Segundo Passô, o plano sempre foi fazer peças de teatro e, a partir desse desejo, foram nascendo algumas necessidades. “Eu tinha uma noção idealizada do texto teatral, queria, de alguma forma, mostrar a potência e os valores daquele texto e pensava que para mostrar a sua força eu precisava fazer disso independente da cena”, afirma. Para ela, pensa-se no texto de forma independente, mas por trás disso há um desejo de que quem não veja a montagem seja capaz de sentir o que está sendo dito. Ela complementa que, com o tempo, foi desmistificando um pouco a premissa de que um texto precisa, necessariamente, ter vida própria: “Ele acaba tendo”.

Ainda sobre a dramaturgia, Passô falou da relação desta com a imagem, já que ela sempre se interessou muito pela relação entre o que se vê e o que está por trás daquilo que é dito, entre ação e pensamento, entre o falar algo e querer dizer outra coisa, entre a imagem e o que está por trás da imagem. “Me interessa a relação e a negociação que se faz entre subjetividades e o coletivo, como essa subjetividade é apresentada em relação aos outros, na coletividade”, explica. Ali, segundo ela, está o desejo de aproximar a arte dos elementos que fazem parte subjetivamente de sua vida e da vida das pessoas com quem convive.

A dramaturga falou ainda dos novos meios de comunicação e da nova construção de narrativas. Para ela, daqui para frente tendemos a ver o texto teatral de outro modo, pela revolução tecnológica, pela intertextualidade: “eu tenho a impressão de que o texto caminha para um outro lugar, que ainda não sei qual é”.

A superação do criador pela obra também é algo que intriga e motiva Grace Passô: “você começa a criar uma coisa e ela é, na verdade, muito maior que você”. Para ela, quem cria cria contornos de direcionamentos de liberdades, mas “o voo é de cada um e vai para outros lugares”. A riqueza de possibilidades de leituras é complexa o suficiente para se dizer ideal para a criação de outras reflexões, segundo ela.

Passô afirma que este é um impulso que sempre a norteou e isso tem a ver com muitas coisas, principalmente o desejo de entender o teatro. “Tem a ver com alguma coisa que se aproxime mais desse universo nosso, sem ficar só se relacionando como outras realidades que não são nossas. Esse desejo de aproximação com o que eu conheço, com o que eu entendo, é algo que sempre me norteou na vida.”

Ainda falando sobre teatro, Passô destacou que o fato de estar dentro de um grupo teatral dita muito a forma de se pensar a arte e foi isso que a fez se identificar com funções conceptivas. No Brasil, segundo ela, há uma entrega, que vem não só como forma de organização de um grupo. “As funções não são tão estáveis e não vivem isoladamente”, afirma.

Passô ressalta sempre o seu apego à sua arte primeira e afirma ficar incomodada com uma crença errônea de que o fazer teatro é o começar de uma carreira. “O fazer teatro não é começar para chegar em algum lugar. Quem faz teatro, faz teatro”. Ela explica que, durante muito tempo, teve alguns convites no cinema e na televisão, mas que sempre foram trabalhos muito dentro de um estereótipo. Hoje vê isso mudar. Para ela, há na atualidade muitos cinemas e, entre eles, aquele com o qual se identifica.

Segundo a dramaturga, a vida de atriz dentro de alguns sistemas como cinema e televisão é uma vida muito complexa, pois, para ela, “a atuação é um posicionamento do seu corpo, uma materialização das ideias”. A relação que existe com esses outros sistemas sempre chegou como uma relação muito diferente da que ela tem com o teatro.

Ao exemplificar, ela cita que há nesses sistemas uma descrição do corpo que contraria a elasticidade que predomina no teatro. “No cinema eu já estava ali descrita e isso faz com que eu me sinta limitada, há uma expectativa por uma forma e eu nem sempre quero aparecer dessa forma”, afirma ao dizer que, com o tempo, começou a entender que o roteiro de cinema tem uma função e não existe apenas para o ator.

No cinema, Grace Passô atuou em seis longas-metragens: Fronteira (2008), de Rafael Conde; O Roubo da Taça (2016), de Caito Ortiz; Elon Não Acredita na Morte (2016), de Ricardo Alves Jr.; Praça Paris (2017), de Lúcia Murat; Temporada (2018), de André Novais Oliveira, em cartaz nos cinemas, e No Coração do Mundo (2019), de Gabriel Martins e Maurílio Martins, recentemente selecionado para o Festival de Roterdã. Mesmo com a breve carreira no cinema, ela chegou atraindo atenções e olhares, e tem recebido todo o reconhecimento que merece pela maestria com que compreende e exerce sua função.

Temporada, de André Novais de Oliveira

Filmes de Plástico

A parceria de Grace Passô com a Filmes de Plástico, produtora do longa Temporada e No Coração do Mundo, começou através de uma indicação do pesquisador Adilson Marcelino. André Novais Oliveira, que trabalhou como assistente de direção neste e dirigiu aquele diz que, logo no primeiro ensaio, a energia da atriz impressionou. Foi o que fez ele reescrever Temporada pensando nela como protagonista. O diretor conta que, após o convite aceito, ele ficou inseguro em trabalhar com alguém que dominasse tanto a arte da atuação, uma vez que costuma trabalhar com atores não-profissionais.

Novais Oliveira conta que a criação da personagem era para ser feita pelos dois, mas, na verdade, quando as filmagens começaram, fluíram sem que muita coisa fosse falada. Para o diretor, contou o fato de ela ser dramaturga no contato com o texto e até no resultado em cena, que destaca uma potente mescla de atores profissionais experientes e inexperientes e não atores e trouxe, segundo ele, um outro olhar que constrói um novo posicionamento perante a arte. “É uma coisa diferente mesmo. Uma força da natureza!”, afirma o cineasta.

Fotos: Leo Lara e Beto Staino/Universo Produções e Divulgação

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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