Crítica | Streaming e VoD

Viajantes

Um ovo fascista

(Voyagers, EUA, CZE, ROM, GBR, 2021)
Nota  
  • Gênero: Ficção científica
  • Direção: Neil Burger
  • Roteiro: Neil Burger
  • Elenco: Tye Sheridan, Lily-Rose Depp, Fionn Whitehead, Colin Farrell, Chanté Adams, Viveik Kalra, Archie Madekwe, Quintessa Windell, Isaac Hempstead Wright, Madison Hu, Archie Renaux, Wern Lee
  • Duração: 108 minutos

Se o desenvolvimento de Viajantes, estreia da Prime Video, não é algo que possa ser considerado surpreendente, o que o diretor Neil Burger preparou para capturar nossa atenção? Sabemos que a sedução do espectador é necessária para que a história seja apresentada e sua narrativa apresentada. Quanto a isso, o diretor já demonstrou inúmeras vezes sua capacidade, e aqui não é diferente. Com uma apresentação honesta, o filme nos arremessa em uma discussão moral que se estende gradativamente e nos mantém constantemente envolvido, submerso em seus detalhes e interessado no desenrolar dos eventos.

Burger tem experiência nessas técnicas de conquista da plateia desde que foi notado, com O Ilusionista há 15 anos. Desde então, acabou criando uma modesta contribuição ao desenvolvimento de uma ficção científica questionadora da sociedade, ambientando no fantástico questões propostas dentro do nosso campo de atuação. Após enveredar ao sucesso de bilheterias com o remake americano de Intocáveis e sair da sua zona de conforto provocativa para uma definitivamente preguiçosa, essa sua estreia no streaming retoma o cineasta que conversa com o mundo através de suas parábolas futuristas.

Viajantes
© Lionsgate

O descobrimento do livre arbítrio entre uma juventude controlada e ameaçada já o tinha levado a ser o convidado a adaptar a primeira parte da trilogia Divergente, e aqui ele retoma essa discussão de maneira mais radical, e com o grau de autoralidade que lhe cabe. Indo além, ele investiga as origens de uma célula fascista para espelhar o crescimento da extrema direita no mundo de hoje. Ainda que as suas ambições fossem ainda maiores do que o que apresenta ao fim e ao cabo, deixando claro que pelo caminho ele abortou um quadro psicológico muito amplo de seu trio protagonista, Viajantes não é tão vazio de reflexão quanto um primeiro olhar poderia acusar.

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Até uma alusão ao conceito do pecado original bíblico poderia estar inserido no contexto apresentado pela narrativa, mas também essa ideia não apetece Burger, que precisaria de tempo, debruçamento e um talento superior para alcançar tantas camadas quanto sugestiona, e que poderiam ser melhor estabelecidas. Ao invés da passividade da análise aprofundada, o diretor está principalmente interessado em criar entretenimento em cima dessa consideração a respeito da ascensão do autoritarismo, e do que ele carrega a reboque – a violência, a corrida armamentícia, o crescimento das figuras falsamente mitificadas.

Viajantes
© Lionsgate

Apesar de não conseguir tridimensionalizar seus personagens, que parecem marionetes do roteiro e das necessidades de discurso do mesmo, Viajantes consegue conectar o espectador à sua trama de tal forma, que suas ações são facilmente compreendidas e compradas pelo nosso emocional, que se coloca no lugar de cada diálogo para entender qual seria sua própria decisão diante de um experimento que tem como objetivo tirar de suas cobaias o poder de questionar. Se Zach é o ovo de uma serpente chocado pelo Estado, quem deveríamos culpabilizar? As benesses da ignorância nunca deveriam ser aplaudidas, seria a mensagem óbvia da obra – e isso perpassa toda a carreira do cineasta; conhecimento é libertação.

Com participação efetiva do astro Colin Farrell no elenco, o filme conta com um grupo de jovens atores que compreendem bem seus lugares de pronúncia na obra, tanto a diminuta equipe de mocinhos quanto a crescente horda de insurgentes, liderados por um odioso Fionn Whitehead (de Dunkirk) imbuído de toda a natureza desgraçada. Inúmeras questões passam intocadas por ‘Viajantes’, tais como a criação de clones para ‘descarte’, além do terror espacial que é tratado rapidamente como fantasia, o que deixa o produto com cara de projeto de 30 milhões que deveria ter tido 100, mais uma hora de desenvolvimento e um autor portentoso no comando. Do jeito que ficou, o filme diverte, provoca, mas deixa o gosto de rumos infinitos e não-concretizados.

Um grande momento
Opostos estabelecidos no refeitório

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Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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