Crítica | Streaming e VoD

Vingança & Castigo

Borrando fronteiras no faroeste

(The Harder They Fall, EUA, 2021)
Nota  
  • Gênero: Western
  • Direção: Jeymes Samuel
  • Roteiro: Jeymes Samuel, Boaz Yakin
  • Elenco: Jonathan Majors, Zazie Beetz, Delroy Lindo, LaKeith Stanfield, Danielle Deadwyler, Edi Gathegi, RJ Cyler, Damon Wayans Jr., Deon Cole, Regina King, Idris Elba
  • Duração: 130 minutos

Não há espaço para panfleto ou discurso racial em Vingança & Castigo, grande estreia da semana na Netflix. Sua existência, seu lançamento, sua identidade, já é evidentemente obra de um pensamento inclusivo étnico, com a sua cor orgulhosa e servindo de trampolim para profissionais de imenso talento, para reestruturar no western o que já vimos acontecer em dramas, suspenses, comédias – há espaço para a excelência negra na indústria sem a necessidade de pedir licença, nem angariar piedade. O resultado qualitativo da própria obra referenda seu discurso não-explícito: nos deixe fazer, é só.

Dirigido e escrito pelo estreante em longas Jeymes Samuel, o filme é uma experiência que empalidece ainda mais o já superestimado Django Livre, um dos maiores sucessos da carreira de Quentin Tarantino. Tudo que soava excessivamente rebuscado e tratado por lá, aqui reverbera de maneira leve, com o intuito ousado – ora bolas – de apenas realizar seu jogo de gênero devassado da maneira mais fluida possível, explorando as potencialidades que o próprio gênero já implica para regurgitar novas imagens, novos heróis, ainda mais complexificados, com linhas de conexão com os vilões mais tênues.

Vingança & Castigo
David Lee/Netflix

Existem poucos atores brancos em cena de Vingança & Castigo, passamos por uma excepcional sequência de um assalto de trem até o protagonista Nat Love chegar em Maysville, cidade habitada absolutamente por pessoas brancas e as nuances estéticas em cena mudarem, histérica e ironicamente. É uma cena capital para que percebamos essas nuances propostas pelo longa até então, e não deve ser por acaso que ela se encontre mais ou menos em seu miolo central; dali, pra trás ou pra frente, tudo é cromaticamente oposto. De coloração viva, o filme demarca naquele momento pálido, quase sem vida, ainda mais suas ambições, indo da narrativa sem firulas ou grandes momentos filosóficos até suas marcas estéticas, pontuais mas não tóxicas, a ponto de tirar o filme de seu prumo.

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Apesar de não negar a opulência estética, Vingança & Castigo não a usa de maneira caricata e/ou exagerada, porque sua principal intenção é contar sua história de maneira dinâmica, sem didatismo e ampliando no western o olhar para a violência do período, que coloca seus personagens em pé de igualdade. No passado, o gênero delineava sem cinza as diferenças entre heróis e vilões. Em um período onde os tipos apenas se antagonizavam, é interessante perceber como o roteiro (também escrito por Boaz Yakin) borra as delimitações de caráter entre os dois grupos de personagens em cena, como na cena em que o bando de Rufus Beck oferece seu “plano de negócios” a Redwood.

Vingança & Castigo
David Lee/Netflix

O desenho de cada personagem também sugere o estranhamento para o público acostumado a marcações mais óbvias. Parece sugerir, incluindo com sua meia hora final, que estão todos equilibrados em suas noções de justiça, ainda que algumas ações sejam mais agressivas e menos éticas que outras. Como trata-se também de uma produção 95% negra, colocá-los em um sistema que os subjuga, sejam eles identificados com os propósitos que forem, é uma maneira de politizar um filme que passeia por entrelinhas, já que o explícito trairia suas motivações cinematográficas, que saem ilesas.

Através dessa óbvia proposta por tangenciar seu filme em um lugar do artifício de gênero, Samuel deixa as implicações políticas de sua obra serem expostas pelos corpos de seus atores, pelo lugar da mulher em soluções e decisões frontais da narrativa, pela forma como organiza a voz e a personalidade de cada pessoa em cena, com mais ou menos tempo, mas todos em igual padrão. Esse elenco em estado de graça (em especial Regina King, Lakeith Stanfield e Danielle Deadwyler, ainda que todos brilhem) entende a conjuração desses elementos e ajuda a contar uma história simples de desdobramentos sofisticados, graças a uma montagem espetacular de Tom Eagles e ao descompromisso de seu material em querer fazer algo superlativo a ferro e fogo. Entendeu, Tarantino?

Um grande momento
O banco de Maysville

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Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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